Crônica da jornalista Tuty Osório:
Histórias que superam e viram lendas. Assim são as de minha avó Henriqueta, que morreu perto dos 90 e está no Paraíso. Segundo os mexicanos, que fazem festa no dia dos mortos, quem é lembrado tem ali, o seu lugar. Também meu pai, Abel Boaventura, assim mesmo, nome composto, encantado em 2021, lá está. Seus ditos são repetidos por nós. Seus veredictos, igual.
– A intimidade pode ser uma armadilha -, dizia muitas vezes, meu pai, e eu recebia esta repetição como uma de suas tiradas de mau humor com a estranheza da vida. Porém, era alegre. Sorria com os olhos, gargalhava com prazer, e tinha a maravilhosa capacidade de nos fazer rir. Escrever é lembrar. Ou tentar barrar o esquecimento. Escrever crônicas é, principalmente, registrar o que nos afeta. De bem e de mal. Embora com a profusão de mensagens que assola os dias de hoje, a maioria vá se perder na passagem do tempo. Mesmo assim, escrever é preciso. Para resistir. Muitas vezes, até, para desistir.
Todas as formas de expressão são uma bandeira teimosa pela memória. Também o cinema, que anda triste.
Um sintoma de que fazer graça está cada vez mais difícil. Sonho em escrever toadas engraçadas, que emocionem, também, por arrancarem, docemente, boas risadas. A melhor companhia é a que compartilha piadas sensíveis, daquelas que simbolizam o que chamamos de bom gosto.
Está em nós não nos perdermos do sorriso. Parece impossível, por vezes. Continuo tentando, inspirada nos aparentemente sisudos, que escreveram páginas e páginas que desabafam. “Itabira, hoje é só um retrato na parede”. Registrou Drummond, lamentando a corrosão da montanha pela mineração, em sua cidade natal. É tão linda a tradução simples do sentimento que o inspira. Sobrevive à imensa melancolia que o tomou e remete a outros escritos, jocosos, dançantes. “João amava Teresa, Teresa amava…” Quadrilha de amores, hilária.
Quadrilha foi dos primeiros poemas que conheci, ainda criança, na voz do ator português João Vilareth, na
vitrola que rodava no início da noite, e nos finais de semana, numa terra onde não chegava a TV. Esse mesmo pai, me mostrou pela mesma voz, do mesmo Drummond, O caso do vestido, este um drama aflitivo, que fazia chorar. Os dias eram assim, repletos de imaginação e de confiança no futuro.
Hoje penso que sei que, ao contrário do que dizem, tudo pouco mudou. Ou percebemos o horizonte iluminado de um futuro que se desenha no presente, ou sucumbimos a um pessimismo inútil. Para que serve confiar? Para nos fazer fortes, mais para mel que para vinagre. Até tamarindo se veste de açúcar para tornar o suco igual a veludo. Até vinho é suave mesmo em tanino carregado, envelhecido, novo, descendo em explosão de aromas e sabores, numa tarde preguiçosa de um sábado qualquer.
*** *** ***
Tuty Osório é jornalista, especialista em pesquisa qualitativa e escritora.
São de sua lavra QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos de 2022); SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho de 2023) e MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA, dez crônicas, um conto e um ponto (crônicas e contos, também de 2023).
CLIQUE AQUI PARA ACESSAR (exclusivo para os leitores do portal InvestNE)
SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA
QUANDO FEVEREIRO CHEGOU
MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA