Texto do escritor Cristhiano Aguiar, publicada originalmente na newsletter Linguagem Guilhotina:
Quando as engrenagens do final da tarde do meu domingo se movem em determinada direção, o que me resta é o tempo. Uma forma de tempo, é verdade, definível como um espelho incapaz de projetar imagens. Quando este tempo passa a habitar as nossas casas, é sinal de que estamos realmente sozinhos e sozinhas.
A luz me levou de volta ao meu cariri, aos lajedos que visitei com reverência e alumbramento. Uma luz dourada assim transfigura plantas, matéria inanimada e eu mesmo. Do lado de fora, eu escutava, volta e meia, os sons agitados vindos do Parque Augusta, localizado na frente do condomínio onde moro; no entanto, nem esses barulhos conseguiram romper a quietude que preenchia minha casa.
A luz me convida a imaginar o coração como uma casa desabitada. Esta casa se desmonta, embora ela nunca desapareça por completo. Você e eu caminhamos por uma trilha sinuosa, cheia de casas que ou ficaram incompletas, ou estão em ruínas. A luz desta caminhada é a mesma do final da tarde do meu domingo – é por isso que eu lá estou.
A imagem parece triste. Mas se o caminho está bonito, nós o visitamos. Na verdade, entramos e saimos das casas abandonadas, lembrando, com ternura, com humor, com algo de frustração, com surpresa, do tempo no qual vivíamos nelas, do tempo no qual conosco o amor habitava.
(toda casa nasce não de paredes, mas de um pomar exuberante, cheio de delícias, localizado ao seu lado. A decisão de quando sair do pomar para entrar no esboço da casa definirá a sua própria edificação futura)
É preciso evitar tanto reedificar a casa, quanto dormir na sua ruína. O sono numa casa abandonada nunca será tranquilo: você acordará de madrugada aos gritos, sentindo o peso, em seu peito, dos fantasmas que você trouxe na bagagem.
Deixo para outro momento o debate sobre o que é o tempo. Pode ser que ele seja sim um “algo”, uma substância; pode ser que seja uma metáfora inventada por nós. Só sei que olho para a vereda que percorri e tudo é tempo: casa, passos, eu mesmo, luz.
Na caminhada, eu invento o tempo enquanto sou inventado por ele.
“Brilhe, escreva um poema, ande:
amplie ainda mais a terra.”
(Adonis, trad. Michel Sleiman)
“A cada instante do tempo, ao lado do que se considera natural fazer e dizer, ao lado do que foi determinado pensar, seja pelos livros, anúncios no metrô ou piadas, há todas as coisas que ela faz sem que ninguém saiba, coisas que são silenciadas por uma sociedade que condena a um mal-estar solitário todos aqueles e aquelas que sentem estas coisas sem poder dar nome a elas. Este silêncio um dia se rompe bruscamente (ou pouco a pouco), e então as palavras jorram sobre as coisas, enfim reconhecidas, enquanto, escondidos, outros silêncios voltam a se formar.”
(Annie Ernaux, Os anos, trad. Marília Garcia)