Artigo do deputado federal José Guimarães (PT), advogado, líder do Governo na Câmara dos Deputados, originalmente publicado no site Brasil 247:
Fazer justiça tributária no Brasil é mexer num vespeiro
Para início de conversa, a carga tributária no Brasil é menor que a média dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) (38 países, a grande maioria da Europa) variando entre 32% a 33%. Nos demais países, entre 34% e 35%. Não é tão elevada quanto se alardeiam. O problema são os privilégios fiscais dos mais ricos e o impacto da tributação na população de menor renda e em situação de extrema pobreza. É isso que tem que ser resolvido e o Congresso Nacional não pode se negar a ajudar o Brasil a superar essa pendência histórica.
Fazer justiça tributária no Brasil é mexer num vespeiro. Desde a proclamação da República, em 1889, os ricos, os donos da produção de quem trabalha, resistem bravamente a pagar impostos. Os anos se passaram e a mentalidade colonial de muitos permaneceu.
Afinal, quem banca a República no Brasil é a classe média e as pessoas de menor renda, que pagam impostos descontados diretamente na folha de pagamento de salários, nas compras que fazem e nos contratos de prestação de serviços.
O fato é que os ricos não querem pagar impostos, se beneficiam de renúncias fiscais e isenções, sem falar na sonegação tributária, praticada por grande parte deles.
Por exemplo, há cerca de R$ 1,7 trilhão aplicados em títulos no mercado financeiro, gerando polpudos lucros e dividendos, sem pagar impostos.
Há mais de R$ 800 bilhões em renúncias e isenções fiscais, o equivalente a 4,8% do PIB. Ou seja, recursos que a Receita Federal deixa de receber de empresas que não pagam impostos. As bets e as fintechs – entre o que recebem de apostas e o que pagam de prêmios – estão lucrando cerca de R$ 40 bilhões, sem gerar empregos.
Em recente pronunciamento, a ministra do Planejamento, Simone Tebet, revelou dados impressionantes sobre a sonegação de impostos no Brasil. Segundo dados da Receita Federal, a sonegação ultrapassou R$ 500 bilhões por ano e o contencioso tributário chegou a R$ 5,5 trilhões. Com apenas 10% desse total zeraríamos o déficit de R$ 50 bilhões. E o que se ouve repetido à exaustão são frases surradas como “tem que cortar gastos”, “a conta não fecha”. Evidentemente, a conta não fecha porque não pagam o que devem ao país.
Já imaginou a soma desse imenso volume de recursos sonegados, mais os recursos das isenções, o que se deixou de arrecadar de aplicações no mercado financeiro e os dos lucros das bets e fintechs, sendo investidos na erradicação da fome e da pobreza extrema, em saúde pública, em educação de qualidade, na pesquisa científica, na habitação, no transporte e em outras áreas, para redução da desigualdade e alívio do sofrimento da população de menor renda ou em estado de vulnerabilidade social?
O Brasil é o segundo país mais desigual do G-20 (as 20 maiores economias do mundo) com os 10% mais ricos detendo quase 60% da renda nacional. Desigualdade alimentada pelos privilégios de classe, por um sistema tributário injusto, com o peso dos impostos recaindo sobre a classe média e a população de menor renda.
No Brasil, menos de 100 pessoas concentram R$ 146 bilhões, enquanto dezenas de milhões enfrentam a insegurança alimentar e a falta de acesso a saneamento básico. Temos que superar essa herança colonial e fazer justiça fiscal: criar meios para que os mais ricos paguem mais e os de menor renda ou de renda ou sem renda paguem menos. Quanto menos desequilíbrio fiscal, menos desigualdade.
Outro agravante que precisa ser enfrentado é a irracional política monetária do Banco Central autônomo, que levou o país a ostentar a indecente segunda maior taxa de juros do mundo. Considerando o atual patamar da Selic, o dispêndio do setor público, em 12 meses, com a rolagem de seu débito deve superar inéditos R$ 1 trilhão de pagamento de juros até o final do ano. Imagina quanto o sistema financeiro está ganhando e concentrando a renda da população. Aumentar a taxa de juros é multiplicar a dívida pública.
Apesar do governo anterior ter furado o teto de gastos em R$ 795 bilhões, os acordos de negociação com os estados foram feitos, os precatórios foram pagos, os fundos de participação dos estados e dos municípios aumentaram com o crescimento da economia e foi aberto um debate sobre renegociação de dívidas com os estados. Foi aprovada a Reforma Tributária, que moderniza, dá eficiência e corrige distorções do sistema tributário, e o Ajuste Fiscal Sustentável, medidas que organizam as contas públicas de forma racional sem aumentar impostos. A aprovação desse conjunto de medidas teve a participação do Congresso Nacional num momento elevado da articulação política do Governo Lula com os presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco, e da Câmara, Arthur Lira, mais os líderes dos partidos da base de apoio, assim como os relatores das matérias, na aprovação de todas as propostas encaminhadas pelo Governo. Isso precisa ser reconhecido. A expectativa é de que esse compromisso republicano e democrático se repita no diálogo que se inicia para aprovação das medidas de aperfeiçoamento do ajuste fiscal.
O Governo Lula tem um Projeto de Desenvolvimento Sustentável com Justiça Social e Ambiental aprovado nas urnas e escolheu investir na reconstrução do país com prioridade na emergência social de erradicação da fome e da pobreza extrema, na economia e na infraestrutura.
Programas sociais foram retomados, ministérios recriados, e o país voltou a crescer, a bater recordes de empregos e de renda, com a inflação controlada. Os indicadores são incontestáveis.
Diferentemente de governos ideologicamente obcecados por cortes brutais de investimentos em políticas públicas, como é o caso de Javier Milei, que levou a Argentina ao desemprego estrutural, a mais de 60% da população à pobreza, e Donald Trump, que também está levando os Estados Unidos à recessão, a mais inflação e ao desmanche institucional do país, com cortes de recursos das políticas públicas, aprofundando ainda mais a desigualdade.
As medidas do Governo Lula, de promoção da justiça tributária, de readequação do ajuste fiscal, causaram grande polêmica, por proteger quem ganha menos e por elevar a contribuição de quem ganha mais. Isso porque, recentemente, foi enviado ao Congresso Nacional uma Medida Provisória que isenta de pagar imposto de renda quem ganha até R$ 5 mil. Em seguida foi editado um decreto que aumentou a alíquota de Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) em algumas operações, como a compra de moedas estrangeiras e o uso de cartão de crédito no exterior, entre outras. O alvoroço foi tão grande que causou a aprovação da urgência de um Projeto de Decreto Legislativo, na Câmara, para anular o decreto do governo. O decreto aumentava, modestamente, alíquotas em outras frentes.
Após reunião com os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre, e da Câmara, Hugo Motta, mais os líderes dos partidos da base, com diálogo franco e democrático, foi negociada uma proposta alternativa, na qual prevaleceu avanços na justiça fiscal.
As alíquotas de IOF serão readequadas e reduzidas. A alíquota fixa do IOF aplicável ao crédito à pessoa jurídica cai de 0,95% para 0,38%. O IOF sobre a operação de crédito conhecida como risco sacado (Adiantamento do valor de uma fatura a um fornecedor, assumindo o risco de pagamento do cliente) não tem mais alíquota fixa, apenas a diária, de 0,0082%. Isso significa redução de 80% na tributação do risco sacado. Essa mudança atende a pleitos de diferentes setores produtivos e financeiros. Para mitigar distorções foi estabelecida uma alíquota fixa de 0,38% na aquisição primária de cotas de Fundos de Investimento em Direito Creditório – FDIC, e outras propostas.
Quanto à Medida Provisória, será padronizada a tributação incidente sobre aplicações e instituições do sistema financeiro. Será ampliada a possibilidade de compensação entre ganhos e perdas. A compensação da renda variável poderá ser feita entre diferentes tipos de investimento no sistema financeiro. Não se trata de tributação. Na busca de isonomia e simplificação tributárias, passará a incidir imposto de renda, com alíquota de 5%, nas novas emissões de títulos que hoje são isentos, como LCA, LCI, CRI, CRA e debêntures incentivadas. Em relação aos demais títulos, sobre os quais já incide imposto de renda, haverá harmonização tributária: independente do tempo de investimento, o imposto de renda será de 17,5%. Ou seja, nada muda na tributação da caderneta de poupança. No caso das instituições do sistema financeiro, as alíquotas de CSLL (Contribuição Sobre Lucro Líquido), hoje vigentes, não sofrerão majoração. O que a Medida Provisória muda é a distribuição das instituições entre as alíquotas já existentes. Nas apostas esportivas, a tributação sobre o faturamento das bets será elevada de 12% para 18%, mas nada muda para os prêmios pagos ao apostador e para o imposto de renda e a CSLL cobrada da empresa. Esse aumento será destinado a ações da saúde. A Medida Provisória também prevê o combate a agentes ilegais, sem autorização. A MP coíbe compensações abusivas de crédito tributário e aumento de compensações tributárias ilegais. A Medida Provisória traz também ajustes relevantes das despesas públicas. As medidas englobam a inserção do programa Pé-de-Meia no piso constitucional da educação, mudança nas regras do Atestmed (serviço digital do INSS para solicitação de benefícios por incapacidade temporária), sujeição à dotação orçamentária da compensação financeira entre o Regime Geral de Previdência Social, os regimes de previdência dos servidores públicos e, em relação ao Seguro Defeso (Surpreendentemente, cresceu 57% neste ano, com indícios de fraude), ajustes nos critérios de acesso e sujeição à dotação orçamentária.
Reduzir a desigualdade começa pela redução dos privilégios de classe. Quem ganha mais deve pagar mais. Quem ganha menos deve pagar menos ou serem isentos. (…) Esse debate terá que ser enfrentado antes que seja tarde.
Reduzir a desigualdade começa pela redução dos privilégios de classe. Quem ganha mais deve pagar mais. Quem ganha menos deve pagar menos ou serem isentos. O que provocou tamanha reação foi o fato de isentar de imposto de renda quem ganha até R$ 5 mil e em seguida editar um decreto que aumentou a alíquota do IOF, para que os ricos dessem sua contribuição. Esse debate terá que ser enfrentado antes que seja tarde. A hiperconcentração de renda no ritmo acelerado e o aumento da pobreza alargando a base da pirâmide poderá levar o Brasil ao abismo.
Precisamos superar nossa herança colonial, nossas pendências históricas, fazer justiça fiscal, reduzir a desigualdade, construirmos um país democrático, justo e livre, sem pobreza, ambientalmente equilibrado, com pessoas dignas, que possam se orgulhar do país que vivem.