Artigo de Valdélio Muniz (foto), mestre em Direito Privado, analista judiciário e jornalista:
Historicamente, há um ditado que se repete à exaustão, mas que, como tudo em matéria de direito, também não há de ser absoluto: o de que decisão judicial não se discute, cumpre-se. Pois bem. Não se trata, de maneira alguma, de pregar desobediência civil, desrespeito às decisões judiciais ou qualquer ofensa institucional. Para a quase totalidade das decisões tomadas por magistrados, isoladamente ou em colegiados (turma, câmara ou pleno de um tribunal), existe o caminho adequado do recurso à instância imediatamente superior. Mas, e quando as decisões partem do Supremo Tribunal Federal (STF)?
Existe um movimento claramente perceptível nas recentes decisões da Corte máxima do Judiciário brasileiro que provoca grave preocupação sobre os rumos que podem tomar os direitos trabalhistas no País (e a própria Justiça Trabalhista): o de esvaziamento sistemático das competências deste ramo especializado do Judiciário. Num determinado momento, o Supremo decide que a contratação de empregados travestidos forçada e fraudulentamente de “pessoas jurídicas”, a malfadada “pejotização”, há de ser respeitada como modelo alternativo de contrato no mercado “moderno”, mesmo sendo claro o intuito de muitos empregadores de, por meio dela, negar a estes trabalhadores direitos próprios da relação de emprego.
Noutro instante, revolta-se o STF com segmentos da Justiça do Trabalho que, após verificarem, caso a caso, o preenchimento ou não, dos requisitos traçados nos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), interpretam a contratação de trabalhadores por meio de aplicativos ou plataformas digitais como relação de emprego (uma posição que, se diga de passagem, embora venha sendo adotada até mesmo por nações tradicionalmente capitalistas, ainda está longe de ser consensual no Brasil).
Atualmente, discute o Supremo, com status de repercussão geral (e não apenas limitada às partes do Recurso Extraordinário 1446336), a quem cabe (se à Justiça comum ou à trabalhista) a competência para analisar este tipo de relação, sob alegação de que pode se tratar de contrato de natureza civil em vez de trabalhista. É fato que, para a composição atual predominante de magistrados com visão “liberal” no Supremo, o erro está no viés protetivo ao trabalhador do Direito do Trabalho, como se, a despeito do pré-requisito de notável saber jurídico exigido dos ministros de Cortes Superiores, lhes fosse permitido ignorar o próprio sentido (histórico) da criação e existência deste ramo do Direito.
Apesar da gravidade desse movimento de quase endeusamento da livre iniciativa, a custo do sacrifício de conquistas históricas dos trabalhadores, a questão ainda não é discutida com a profundidade merecida pela sociedade, pois o debate permanece restrito aos próprios meios jurídicos e acadêmicos.
Para quem tem interesse no tema, a dica é o livro “A Justiça Política do Capital: a desconstrução do Direito do Trabalho por meio de decisões judiciais”, do desembargador Grijalbo Fernandes Coutinho, do Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 10ª Região (Distrito Federal e Tocantins). Leitura essencial para entender esta
conjuntura e a catástrofe que ela prenuncia.