Artigo do professor Alder Teixeira, originalmente publicado no site Segunda Opinião:
Durante palestra no Cine São Luiz, dentro da programação em homenagem aos oitenta anos de Chico Buarque de Hollanda, evento organizado pela Academia Cearense de Cinema, levanta-se a questão: “Músicas como ‘Com açúcar, com afeto’ devem ser excluídas do repertório do compositor?”
O debate prende-se ao depoimento do próprio compositor no documentário “O canto livre de Nara Leão” (2022), dirigido por Renato Terra, em que afirma que não cantará mais a aludida música em seus shows por ter assimilado críticas feministas identificando machismo na letra.
Escrita do ponto de vista da mulher, “Com açúcar, com afeto” apresenta uma mulher submissa ao marido farrista, que ao final de um dia de trabalho gasta as horas livres andando de bar em bar, discutindo futebol e “olhando as saias, de quem vive pelas praias coloridas pelo sol”.
Na contramão do que professa o movimento feminista, a mulher não apenas se deixa aborrecer pelo marido, numa sutil tentativa de explorá-la sexualmente, como vai esquentar seu prato e abrir-lhe os braços, como a simbolizar o gesto referido o próprio abrir de pernas na relação carnal.
“Com açúcar, com afeto” foi composta em 1966 e, além de constar do disco “Chico Buarque de Hollanda, vol. 2”, aparece no álbum “Chico Buarque & Maria Bethânia ao vivo”, de 1975. É a primeira experiência poética do compositor na perspectiva do eu lírico feminino, algo que passaria a ser mesmo uma das marcas mais notáveis da obra de Chico Buarque de Hollanda, aquela em que revela à perfeição os sentimentos e emoções da mulher em relação ao homem. É que o conteúdo poético dessas letras, quase invariavelmente, dá a ver a mulher como um ser sentimentalmente dependente, entregue aos caprichos e idiossincrasias masculinos.
Ora, ora. A discussão ignora o fato de que se trata de uma obra de arte como tantas e tantas outras que, se retiradas do repertório poético nacional, subtrairiam parte considerável do que existe de mais valioso esteticamente falando. E não é de agora: Gonçalves Dias, num dos mais bem realizados poemas da poesia romântica brasileira, já o fizera em meados do século 19 com o seu irretocável “Leito de folhas verdes”, em que uma indígena se submete às inconstâncias do amado para o qual preparara com esmero o confortável leito em que se amariam. Mas ele falta ao compromisso deixando-a só e abandonada. O poema é lindo, envolvente, e o ponto de vista feminino adorna com singular encanto o desencontro amoroso, nada expondo de desrespeitoso acerca do papel da mulher. Desencontros existem, e também os homens enriquecem as estatísticas da desilusão amorosa, o que ensejou matéria primorosa para o cancioneiro popular em torno do que se convencionou chamar de dor-de-cotovelo. A vida como ela é, sem tirar nem pôr.
Sobre o fato envolvendo o maior compositor vivo do país, ocorre-me lembrar o que diz André Simões em livro recém-lançado (recomendadíssimo!) sobre as canções de Chico Buarque de Hollanda: “… há o fato de que não é possível para uma canção ser machista, pois apenas pessoas podem sê-lo: assim como um filme que conta a história de um assassinato não é ‘um filme assassino’, uma canção que retrata machismo não se torna automaticamente uma ‘canção machista’”.
Há, como me parece ser o caso de “Com açúcar, com afeto”, que se estabelecer a sábia diferença de que cantar o amor, ainda que fora dos padrões recomendados pelo olhar feminista, é algo diferente de fazer a apologia de comportamento machista. A composição de Chico Buarque apenas retrata uma situação, infelizmente recorrente, ainda hoje, na relação homem/mulher. Desnecessário dizer, por óbvio, que o faz emblematicamente bem do ponto de vista poético, e a canção, por suas qualidades estéticas, figura entre as grandes composições do autor.
É significativo acerca da polêmica o que diz Fernanda Takai, do alto de sua feminina jovialidade e inquestionável beleza: “Com açúcar, com afeto” é obra muito bem escrita, que dá voz a uma personagem num espaço bem delimitado na arte”.
De fato, a canção de Chico Buarque de Hollanda foi vazada em linguagem poética adequada, com elegantes versos de sete sílabas (redondilhas maiores), com esquema de rimas clássico: aabcd. A letra é ainda mais valorizada pelo requinte musical, com modulações extremamente competentes e condizentes com o elemento dramático da narrativa, o que, já em início de carreira, Chico Buarque já era capaz de explorar enquanto compositor em pleno domínio da teoria musical.
A MPB, assim como a literatura, o teatro, o cinema, está acima do que propõe o debate simplista e despreparado que se quer levar a efeito sobre ela. “Com açúcar, com afeto” é obra-prima do cancioneiro popular.
Chico Buarque escorregou em casca de banana, que me perdoem a expressão em nada poética de que lanço mão para lhe contrapor minha humilde opinião.