Reforma visa a adaptar Código Civil a inovações tecnológicas e sociais da última década

Da revista Consultor Jurídico, com texto do editor Sérgio Rodas:

O principal objetivo da reforma do Código Civil é adaptar a norma aos avanços tecnológicos ocorridos nas últimas décadas. Além disso, a atualização busca aumentar a proteção aos cidadãos, facilitar atividades empresariais e refletir as alterações nas relações sociais.

Foi isso o que afirmaram especialistas no segundo encontro da série “Reforma do Código Civil em Foco”, ocorrido na Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro. O anteprojeto da reforma do código foi apresentado em abril deste ano por uma comissão de juristas criada pelo Senado.

O ministro do Superior Tribunal de Justiça Marco Aurélio Bellizze, vice-presidente da comissão e coordenador acadêmico da FGV Conhecimento, apontou que a ideia principal da reforma é incorporar o livro digital à norma, refletindo os avanços tecnológicos.

Segundo o magistrado, a comissão atualizou o Código Civil de acordo com posicionamentos jurisprudenciais e enunciados de jornadas temáticas. Um dos principais pontos foi uniformizar o prazo de prescrição, que é diferente dependendo da matéria. A tendência é estabelecer cinco anos como prazo prescricional, disse. O grupo também estabeleceu que a “reparação civil” engloba pretensões da responsabilidade contratual e extracontratual — portanto, o prazo prescricional é o mesmo nos dois casos.

Outro ponto relevante, para Bellizze, é a modificação do artigo 317, que trata da teoria da imprevisão. O objetivo foi consolidar elementos da alteração da base objetiva e da onerosidade excessiva, uma vez que havia uma confusão entre esses institutos.

O novo artigo 317 tem a seguinte redação:

“Se, em decorrência de eventos imprevisíveis, houver alteração superveniente das circunstâncias objetivas que serviram de fundamento para a constituição da obrigação e que isto gere onerosidade excessiva, excedendo os riscos normais da obrigação, para qualquer das partes, poderá o juiz, a pedido do prejudicado, corrigi-la, de modo que assegure, tanto quanto possível, o valor real da prestação.”

Já o parágrafo único determina que, para os fins desse artigo, “devem ser também considerados os eventos previsíveis, mas de resultados imprevisíveis”.

O ministro do STJ também destacou a ampliação dos bens impenhoráveis. Agora, exceto para cumprimento de obrigação alimentar, o patrimônio mínimo existencial da pessoa, da família e da pequena empresa familiar não pode ser executado para pagar dívidas.

Bellizze ainda apontou a reforma nos contratos, com regras para acordos paritários e de adesão.

Desafios conceituais
Rosa Maria Nery, relatora-geral do anteprojeto do novo Código Civil e professora de Direito Civil da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, citou alguns dos principais desafios enfrentados pela comissão.

Ela enfatizou as dificuldades trazidas pela harmonização da capacidade jurídica e incapacidade em face do Estatuto da Pessoa com Deficiência, e mencionou o esforço para alinhar o Código Civil às necessidades inclusivas e aos princípios de autonomia das PCDs.

Outro ponto citado pela professora foi a relevância do registro civil como fonte da identidade individual, familiar e política. Rosa criticou a falta de precisão no tratamento dado às diferenças entre averbação e registro nos artigos 9º e 10º, ressaltando que ali está o que é essencial para garantir a “institucionalidade da ideia de pessoa no contexto da experiência civil”.

Uma novidade destacada foi a incorporação da afetividade no Direito Civil, incluindo questões como a possibilidade de reconhecer juridicamente vínculos entre enteados e padrastos ou madrastas.

“Isso conecta o Direito à ideia de vínculo socioafetivo, mas não se confunde com a simples afetividade, que é tratada em situações como a conexão emocional entre uma pessoa e seu animal de estimação”, explicou.

Rosa também sugeriu uma mudança terminológica significativa: renomear os “direitos de personalidade” como “direitos de humanidade”. Segundo ela, o termo refletiria melhor o caráter universal desses direitos, ligados à natureza humana e não apenas à individualidade da pessoa. Apesar disso, reconheceu que a expressão “direitos de personalidade” permanece amplamente consolidada internacionalmente.

Impactos nas relações familiares e empresariais
Rosa Nery ressaltou as transformações na dinâmica patrimonial e nas relações familiares. Segundo ela, há uma transição de um sistema de comunhão universal de bens e casamentos de longa duração para um contexto mais dinâmico e individualizado, que é reflexo das mudanças sociais. Ela afirmou que a nova proposta de Código Civil tenta equilibrar essas demandas, mas admite que muitos pontos permanecem em aberto.

Quanto à responsabilidade civil, a professora destacou a necessidade de conectar a ilicitude, tratada na parte geral do Código Civil, com as disposições específicas dos artigos 927 e seguintes. Além disso, apresentou o conceito de “atividade ilícita” como um novo desafio. “O ilícito pode ser algo que ofende a lei, que causa dano ou que se faz para prejudicar. Como tratar a ilicitude em atividades contínuas e organizadas? Isso foi enfrentado, ainda que de maneira singela.”

Ela também destacou a presença da responsabilidade civil objetiva em diversos aspectos do código, como nas cláusulas gerais de boa-fé e função social, e alertou para a necessidade de uma interpretação mais consistente dessa objetividade em áreas como Direito de Família e contratos.

Na parte referente às pessoas jurídicas, Rosa Nery mencionou uma significativa mudança na fiscalização de fundações, com uma redução do papel do Ministério Público. Para ela, a proposta abre caminho para que o MP concentre sua atuação na defesa dos interesses públicos.

Outro ponto relevante foi o tratamento da prova legal, tema que ela descreveu como central no Direito Civil. “A prova legal obriga o juiz a aceitá-la, exceto em casos de falhas documentais ou substanciais”, afirmou.

Direito de propriedade
O desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Marco Aurélio Bezerra de Melo, relator da subcomissão de Direitos das Coisas da comissão para a reforma do Código Civil, destacou as três vertentes que guiaram os trabalhos do grupo. A primeira foi a consolidação da jurisprudência, com base em decisões do Superior Tribunal de Justiça, e da doutrina, especialmente por meio dos enunciados elaborados desde 2002 no âmbito do Conselho da Justiça Federal.

A segunda vertente tratou da resolução de questões práticas, como a necessidade de destravar problemas que ainda afetam setores cruciais, como o agronegócio.

Ele citou, por exemplo, a dificuldade de operacionalizar o penhor rural devido à exigência de especificações detalhadas sobre os bens empenhados. Segundo Bezerra, o objetivo foi buscar soluções que, ao mesmo tempo, ofereçam segurança jurídica e simplifiquem os processos.

A terceira diretriz abordou a funcionalização dos institutos jurídicos e das titularidades. O magistrado defendeu que a função social da propriedade, prevista na Constituição Federal, não deve ser vista como uma limitação, mas como uma essência do direito de propriedade. Ele ressaltou a importância de modernizar conceitos, ancorando-se em exemplos históricos como a Constituição de Weimar, da Alemanha pré-nazista, que já previa que “a propriedade obriga”.

AirBnb x condomínios
Entre os temas mais controversos debatidos pela subcomissão está a locação por curtíssima temporada, popularizada por aplicativos como o AirBnb.

O desembargador expôs as três posições que emergiram do debate: 1) a mais liberal, que defende que condomínios não podem interferir nas decisões dos proprietários sobre alugar seus imóveis; 2) a posição intermediária, que permite a prática, salvo proibição expressa em convenção ou assembleia condominial; e 3) a mais restritiva, que só autoriza o aluguel por aplicativos mediante permissão expressa da convenção ou assembleia.

Bezerra admitiu ter sido vencido na votação, pois defendia o posicionamento intermediário, que ele considerava mais equilibrado. “Para minha surpresa, a comissão entendeu que o ‘não’ deveria prevalecer na vida condominial, salvo permissão expressa”, relatou.

O relator também abordou a ampliação do conceito de propriedade fiduciária, que, atualmente, é usada predominantemente como garantia para aquisição de bens móveis e imóveis. Ele sugeriu que sua aplicação possa ser estendida a áreas como gestão de ativos, facilitando práticas como o planejamento sucessório por meio de holdings familiares.

Outro ponto destacado foi a proposta de modernização do conceito de abuso de direito. Bezerra criticou a visão ultrapassada que exige prova de intenção de prejudicar para caracterizar o abuso. Segundo ele, o anteprojeto propõe uma perspectiva objetiva, em que o abuso seja reconhecido quando o direito é exercido fora de sua função social.

No campo do condomínio edilício, Bezerra abordou uma série de problemas que exigem soluções práticas. Entre eles, destacou o aumento da inadimplência causado pela multa reduzida para 2% em caso de atraso no pagamento de cotas condominiais, prevista no Código Civil de 2002. “Estamos restaurando a multa para 10%, nem salgada como antes, mas também não tão branda”, explicou.

Ele também defendeu o reconhecimento da personalidade jurídica dos condomínios edilícios em situações específicas, como na aquisição de bens, a fim de destravar questões registrárias. Por fim, ressaltou a necessidade de consolidar na legislação a jurisprudência sobre a responsabilidade pelo pagamento de cotas condominiais em casos de posse não registrada.

Direito da empresa
O advogado Flávio Galdino, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e membro da subcomissão de Direito da Empresa para reforma do Código Civil, afirmou que as alterações na área visam fortalecer o ambiente jurídico e econômico brasileiro, com foco em segurança jurídica e desburocratização da vida empresarial.

Uma das inovações destacadas pelo advogado foi a introdução de uma principiologia específica para o Direito Empresarial, inspirada em legislações internacionais. Essa novidade, segundo ele, preenche uma lacuna histórica, oferecendo diretrizes para a solução de questões práticas que eventualmente não estejam previstas em lei.

Entre os princípios, Galdino destacou a força obrigatória dos contratos sociais e a autonomia do empresário na regulação de sua atividade. “É essencial dotar o empresário de capacidade para autorregular a vida empresarial, respeitando as normas de ordem pública”, explicou.

Outro ponto ressaltado pelo professor é a simplificação de formalidades societárias, como a realização de deliberações e assembleias. O anteprojeto sugere a implementação de mecanismos como comunicações exclusivamente eletrônicas e a possibilidade de “assembleias de papel”, prática já comum no cotidiano de pequenas empresas.

Além disso, a proposta busca estimular o uso da arbitragem como método de solução de controvérsias, prevendo sua inclusão direta nos contratos sociais. “Essa possibilidade já existe nas sociedades anônimas e tem se mostrado eficiente. Por que não a estender às empresas reguladas pelo Código Civil?”, questionou.

Encerramento de empresas
Um dos pontos mais sensíveis abordados pela reforma é o encerramento de empresas, tema que, segundo Galdino, enfrenta sérios entraves no Brasil. Ele lamentou que muitas empresas pequenas, ao fechar as portas, deixam pendências em aberto devido à complexidade e aos custos do processo de dissolução. O anteprojeto propõe a simplificação desses procedimentos e a incorporação de critérios claros para a apuração de haveres, baseados na jurisprudência do STJ.

“O objetivo é dar prioridade à preservação da empresa e evitar decisões judiciais arbitrárias que prejudiquem o ambiente empresarial. Quem deve estabelecer os critérios são os contratos sociais, e não o juiz”, pontuou.

A proposta também aborda a questão da concorrência em casos de dissolução ou alienação de empresas. O novo texto inverte a lógica do Código Civil atual, estabelecendo que a concorrência será livre, salvo disposição em contrário. Para Galdino, essa mudança reflete um compromisso com a modernização e o estímulo ao empreendedorismo.

Relações virtuais
Cláudia Lima Marques, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e integrante da subcomissão de Contratos para reforma do Código Civil, afirmou que uma das principais propostas de modernização do Código Civil está relacionada à inserção de conceitos voltados ao ambiente digital, como contratos inteligentes, interoperabilidade e segurança tecnológica.

“A expectativa atual é que produtos e serviços funcionem juntos, como um celular e seus aplicativos. As pessoas esperam funcionalidade, durabilidade e segurança, sem ficarem dependentes de uma única tecnologia ou fabricante. Isso é a simbiose entre produtos e serviços, que está sendo reconhecida pelas legislações mais avançadas do mundo, como o Digital Services Act e o Digital Market Act na Europa”, explicou Cláudia.

De acordo com a professora, um ponto central é a crescente relevância dos intermediários digitais, como plataformas e algoritmos, na formação de contratos e relações comerciais. Cláudia argumentou que o intermediário, muitas vezes invisível, tornou-se o personagem principal no mundo digital.

“No mundo analógico, comprador e vendedor se relacionavam diretamente. No digital, quem controla a arquitetura do contrato é o intermediário. Ele desenha o algoritmo e decide como as partes interagem.”

Função social
A professora também abordou a importância de preservar os princípios fundamentais do Código Civil, como a função social dos contratos, adaptando-os ao contexto contemporâneo. Ela ressaltou que o projeto de atualização da norma busca concretizar esses princípios, sem criar novas cláusulas gerais, mas esclarecendo e reforçando os existentes, como o princípio da confiança.

Para Cláudia, a modernização do Código Civil é essencial para garantir que a legislação acompanhe as transformações tecnológicas e sociais. A proposta de reforma, segundo ela, representa um esforço para alinhar o Brasil às tendências internacionais, ao mesmo tempo em que mantém os pilares éticos e sociais que sustentam o edifício do Direito Privado.

Desafios sociais
Pablo Stolze Gagliano, juiz do Tribunal de Justiça da Bahia, professor da Universidade Federal da Bahia e relator parcial da subcomissão de Direito da Família para reforma do Código Civil, deixou claro que a norma não prevê poligamia nem regula o conceito de “família multiespécie”, mas traz avanços no reconhecimento da afetividade no cuidado com animais domésticos, alinhando-se ao entendimento de que eles são seres sencientes.

“Não consagramos zoofilia nem algo do tipo”, disse, ao explicar a previsão de divisão de custos e responsabilidades com animais em caso de divórcio, considerando o impacto emocional e financeiro que esses cuidados implicam.

Ele ressaltou a ampliação da autonomia privada no âmbito familiar, permitindo maior liberdade contratual entre casais. Gagliano mencionou a possibilidade de cláusulas em pactos antenupciais e convivenciais que vão além do regime de bens, como multas por infidelidade.

Stolze defendeu a “cláusula do pôr do sol” (sunset clause), que permite a alteração automática de regimes de bens após um período predeterminado. Segundo ele, essa inovação dá aos casais maior flexibilidade e segurança patrimonial, especialmente em segundas uniões, onde traumas de divórcios anteriores podem influenciar decisões sobre bens.

Para o juiz, a reforma busca refletir as demandas da sociedade contemporânea sem perder de vista as necessidades das classes mais vulneráveis. Ele destacou que o fortalecimento da autonomia privada e a extrajudicialização de procedimentos visam desburocratizar e facilitar a vida cotidiana das pessoas.

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