Texto de Fábio João Szinwelski, procurador da Fazenda Nacional, publicado originalmente no site Consultor Jurídico:
Basta dar um Google com o termo de pesquisa “conta blindada” que aparecerão diversos sites de fintechs — com o apelido de “banks” — oferecendo esse tipo de serviço, qual seja, a abertura de uma conta em que você pode colocar o seu dinheiro sem medo de que ocorra uma penhora online via Sisbajud.
E não é só isso. De regra os valores que transitam por essas contas não serão informados à Receita Federal do Brasil e nem ao Coaf, facilitando a sonegação fiscal e a lavagem de dinheiro.
Evidentemente que não apenas os credores privados, mas também o Estado e a sociedade como um todo sofrem prejuízos com a existência desse tipo de contas. Os únicos beneficiados são os devedores, sonegadores e lavadores de dinheiro. Ah, e é claro, também as fintechs que oferecem o serviço.
É praticamente impossível dimensionar o tamanho do buraco, mas apenas no caso tratado na operação ‘concierge’ a Polícia Federal identificou uma movimentação de R$ 7,5 bilhões por meio de “bancos digitais” que funcionam sem autorização do Banco Central.
Contas bolsões, contas em plataformas e escrow
Mas como pode uma coisa dessas? Bem, para além da inesgotável criatividade, com certeza temos falhas regulatórias em nosso sistema.
Uma das formas para pôr em pé esse tipo de blindagem patrimonial se dá por meio das chamadas “contas bolsões”, termo que se refere à conta mantida pela fintech junto a uma instituição financeira regular, autorizada a funcionar pelo Bacen, como um banco comercial, sociedade de crédito direto, etc.
Os clientes entregam o dinheiro à fintech, que o deposita na sua “conta bolsão” junto a uma instituição financeira. A fintech controla os saldos dos clientes na sua contabilidade interna, cumprindo as ordens de pagamento e transferência dadas por estes. Formalmente, as operações são realizadas em nome da fintech, e não do real titular do dinheiro, impedindo qualquer tipo de penhora e controle estatal.
Outra forma de “conta blindada” são aquelas mantidas junto a instituições de pagamento (“plataformas”) que operam abaixo da faixa de valores a partir da qual é necessária autorização de funcionamento pelo Banco Central. Atualmente o corte está em R$ 500 milhões de movimentação anual.
Por fim, queremos chamar a atenção para as escrow accounts, também conhecidas como contas garantia, contas vinculadas ou contas caução. Essa parece ser uma “solução” cada vez mais oferecida no mercado em termos de blindagem patrimonial.
A escrow é um tipo de conta especial, transitória, de passagem, aberta pelas partes envolvidas em um negócio junto a uma instituição financeira ou de pagamento. O preço do negócio é depositado nessa conta, e só é liberado para a contraparte após cumpridos os requisitos previamente acordados.
Por exemplo, imaginemos que A quer comprar um apartamento de B, mas pende sobre esse imóvel uma penhora. No contrato eles combinam que o pagamento será realizado numa conta escrow aberta em um banco escolhido por ambos. O dinheiro retido na conta só será liberado quando B apresentar ao banco comprovante do levantamento do gravame.
Esse tipo de conta é muito usado em transações imobiliárias, fusões e aquisições de empresas, antecipação de recebíveis, etc.
Mesmo não se enquadrando em nenhuma das hipóteses de impenhorabilidade previstas no artigo 833 do CPC, as ordens de bloqueio enviadas via Sisbajud não têm atingido os saldos depositados nessas contas escrow.
Para piorar, estas contas têm sido “flexibilizadas” para que seu funcionamento se aproxime de uma conta corrente tradicional. Isso ocorre especialmente quando a escrow está vinculada a transações de antecipação de recebíveis (cessões de crédito).
O FIDC, securitizadora ou factoring que adquire o crédito de uma determinada empresa paga o valor correspondente em uma conta escrow. Após as conferências de praxe sobre os títulos cedidos, o dinheiro é liberado para o cedente, quando deveria sair da conta escrow para uma conta corrente normal, pois a escrow é uma conta de passagem.
Entretanto, as fintechs têm “flexibilizado” as contas escrow, permitindo todo tipo de entrada e saída, como Pix, pagamento de boletos, transferências, processamento de folha de salários, etc. E tudo isso fora do alcance do Sisbajud, da Receita Federal e, provavelmente, do Coaf.
Note-se ainda que muitas vezes as alienações de bens ou rendas operacionalizadas com auxílio de contas escrow se dão em fraude à execução fiscal, sendo absolutamente ineficazes perante a Fazenda Pública, visto que realizadas por devedores inscritos em dívida ativa em situação de insolvência.
Nestes casos, com mais razão ainda, os valores mantidos em contas escrow deveriam ser atingidos pela penhora on line (Sisbajud).
Deturpação
Pontuamos que as fintechs surgiram com o nobre propósito de dinamizar o mercado, aumentar a concorrência e reduzir os custos para o consumidor final. Entretanto, não restam mais quaisquer dúvidas de que muitas delas estão sendo usadas para fins condenáveis.
Portanto, é hora de separar o joio do trigo, o que passa necessariamente pelo aprimoramento e eliminação das brechas que hoje existem na normatização do Banco Central, Receita Federal e Coaf. Os credores, o Estado e a sociedade como um todo agradecem.