Crônica da Tuty Osório: “Genérico profissa”

Crônica da Tuty Osório: “Genérico profissa”

Texto da jornalista Tuty Osório:

Amo os aniversários na casa dos amigos. Aquela gente reunida que não vejo, faz tempo. Pessoas que você
gosta de verdade, porém convive pouco porque afinidade e ternura não andam, necessariamente, juntas. A dúvida idiota até à hora de sair. Depois a alegria de chegar, o colorido único dos encontros. Intimidade de quem se conhece há tempos, com carinho e atenção intensas.

Até esbarrar com o professor de Deus. Assim mesmo, com a primeira maiúscula. Não é um professor como os outros. Freiriano, ou não, daqueles que sabe ouvir tão bem quanto falar. Não. Esse é alguém que entende de tudo, basta existir o assunto. Sabe mais de café que os baristas. Nem ouse ser sommelier e descrever um bom vinho, melhor. A atividade de um conviva pode ser comunicação há 40 anos, ninguém domina com maior convicção uma estratégia de internet que essa criatura segura de si. Contraria sem cerimônia, enumerando sentenças de manual.

Se o professor de Deus for um de seus amigos íntimos está tranquilo. Acostumada e conhecedora longeva
do jeito dele, basta condescendência e algumas gargalhadas. O amigo recua sem se ofender e recai poucas
vezes, após o primeiro certame de se exibir. O perigo é quando você está sendo apresentada. O fervor em mostrar conhecimento é tanto que destrói qualquer troca de ideias, meu esporte intelectual predileto, vulgo conversar. Só não ganha da leitura, embora fique ali, ombro a ombro, no prazer que me proporciona.

Só que o professor de Deus não conversa. Só ele, ou ela, fala, desfiando as instruções com ar superior. – A
sociedade atual é do cansaço, – foi sentença comum que soava como um alarme de que o professor de Deus
postara-se, ao seu ladinho, no jantar das bodas de prata do casal querido. Pressupõe que você jamais ouviu falar do coreano sucesso, descreve palavra por palavra o que leu, diretamente ou numa resenha. Tanto faz. O que prevalece é que tem tudo para te ensinar a respeito. Um gole no vinho tinto escolhido com emoção pelo dono da casa e o professor de Deus desfia as castas, as regiões demarcadas, o teor alcóolico. Só serve se for Borgonha, tinto vai com carne, branco com peixe, sabia? E você reles mortal que aprecia o néctar e corre atrás das promoções
dos melhores, condena-se a balançar a cabeça com cortesia.

Nem pense em discutir. Acrescentar. Contribuir. Primeiro porque, dificilmente, haverá espaço. O professor
de Deus não quer te ouvir. Seu desejo é mostrar o que sabe sobre o que quer que seja. Não há ninguém mais sabido. Não entra no mérito se há um engenheiro calculista no recinto. As partes de concreto são em densidade superior a outros materiais, seja lá o que isso signifique. E teime que leva sermão. E nem se atreva a questionar. Prepare-se para um tratado de informações de almanaque, reportagem de revista, verbete de site. Na era digital esse espécime prolifera. Teoricamente, ficou bem mais acessível saber.

Característica comum do nosso personagem é ser amigo de todas as pessoas importantes. Comente a última leitura do Antônio Fagundes no Instagram e o PROF vai te relatar que jantou com ele na derradeira viagem ao Rio de Janeiro. Unha e carne com a Patrícia Pilar, camaradinha cotidiano da casa do Lázaro e da Thaís em Salvador. Do mesmo modo é amicíssimo de políticos destacados, empresários abastados, publicitários famosos, jornalistas de grife. – Glória Pires prefere Pilates, tem até um estúdio na casa dela, todo equipado. Semana passada, em Goiânia, bati um papo longo com ela e com a Andrea Sadi, lá mesmo, enquanto esperávamos o Orlando tomar uma ducha, antes do jantar, – afirma o mestre feliz, feliz.

O danado é que a maioria é constituída de pessoas boas. Que não querem o mal. A intenção e ação é
completamente autocentrada, não é com ninguém, é com a escolha que fizeram de um modo de estar no mundo.

Dependendo do dia até se aprende alguma coisinha com eles. Muito gentis, alcançam a taça de espumante para você, mantêm o pessoal dos canapés em órbita confortável. Nunca são grosseiros, a rigor. Podem, no
máximo, ser deselegantes.

Há dias que nos exasperam tanto que juramos nunca mais voltar aos amorosos eventos. Sorte que de um para o outro já esquecemos. E inapelavelmente estaremos em mais um cerco liderado por mais um simpático professor de Deus.

Não perca a fleuma. Nem desista da festa. Se for impossível fugir conforme-se, aproveite. Há sempre um
fiapo útil que rodopia e compensa a aula que você não pediu.

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Tuty Osório é jornalista, especialista em pesquisa qualitativa e escritora.

São de Tuty Osório os livros QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos de 2022); SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho de 2023) e MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA, dez crônicas, um conto e um ponto (crônicas e contos, também de 2023).

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MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA