Crônica de Tuty Osório: “A senhora do bom papo”

Texto da jornalista Tuty Osório:

A amiga conta no chope de quinta que tem tido pesadelos nervosos. Emergência climática, a cidade debaixo de água, todos nós na situação dos nossos irmãos do Rio Grande do Sul. Assaltos, assassinatos, somos perseguidos pelo tráfico, passantes das balas perdidas.

A filha no lugar dos jovens revistados pela polícia, intimidada com armas de guerra. Estamos no primeiro chope e não atino se aconteceu, acontece ou se foi mesmo sonho. Preocupada com a lucidez dela e com a minha, faço a pergunta com cuidado.

– Amiga você sonhou, foi? Desculpa, é que me dispersei e não sei se entendi bem…

Ela não responde. Lágrimas, o arrastar brusco da cadeira, vai embora. Pelo whatsapp, desculpa-se. Não está dando conta, está muito difícil, sente medo e não sabe lidar. O chope perde a graça, peço um sanduíche para viagem e como o bar é pertinho de casa, caminho devagar. Por isso que esisti desses encontros faz tempo. Quase ninguém consegue conversar direito, mais. Eu, incluída, não raras vezes. Começo a acreditar que estou em sofrimento social. Tenho lido sobre isso. Mas não gosto desse sentimento. Quem gosta? Parece daquelas coisas que só acontecem aos outros. Chega a hora que os outros somos nós.

Disseram-me, há dias, que é preciso acontecerem calamidades para haver união. Será? Porque não conseguimos mais escutar uns aos outros? Porque o prazer do encontro não é mais prioridade?

Impossível de me aturar com tanto queixume, opto pela academia. Esteira rolando, música nos fones, toalhinha no pescoço, garrafinha de água à mão.

Esqueci-me de trocar os tênis e uma ardência de ferida tortura-me. Perturbadora do relaxamento pretendido com o movimento. Nem querendo, faço pacto com a alienação. Ainda bem…

*** ***

Tuty Osório é jornalista, especialista em pesquisa qualitativa e escritora.

São de sua lavra QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos de 2022); SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho de 2023) e MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA, dez crônicas, um conto e um ponto (crônicas e contos, também de 2023).

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