Osvaldo Euclides Araújo: “Precisamos falar do ‘BCdoB’ (parte 6)”

Osvaldo Euclides Araújo: “Precisamos falar do ‘BCdoB’ (parte 6)”

Artigo do economista e jornalista Osvaldo Euclides Araújo, originalmente publicado no site Segunda Opinião:

Um movimento chamado Auditoria Cidadã, dirigido por uma ex-servidora pública, a economista Maria Lúcia Fatorelli, põe em questão, sem fazer acusações específicas, o valor atual da dívida interna brasileira. Em números redondos o Brasil tem uma dívida de 8 trilhões de reais e pagou nos últimos doze meses algo como 840 bilhões de reais em juros. Em palestras e em entrevistas a meios de comunicação na internet, a economista diz acreditar que há possibilidade de encontrar alguma diferença, a favor ou contra credores e devedores, por razões diversas, e que deveria ser de interesse do Banco Central e do próprio governo a realização da auditoria. Por suas próprias razões, o mercado não quer nem ouvir falar disso.

O mercado, entretanto, sabe que auditoria é prática usual do mundo dos negócios e das finanças, uma ferramenta capitalista útil na gestão privada e pública, às vezes necessária, às vezes incontornável.

E todos sabem que as contas públicas brasileiras sempre foram cheias de peculiaridades capazes de confundir até agentes experientes, sérios e competentes. E os últimos 30 anos, quando a dívida interna acelerou-se, foram marcados por muitos ajustes,  planos de estabilização, trocas de moeda, negociação e consolidação de débitos, uso e resgate de moedas podres (títulos da dívida agrária, obrigações da Eletrobrás, Siderbrás…), precatórios, conta-movimento, um supermercado de particularidades milionárias em circunstâncias muito específicas, campo fértil para erros, descuidos, enganos e omissões também milionários. Sem falar da inflação que confundia tudo e todos, com taxas enormes.

E nos Planos Cruzado, Verão, Bresser, Collor e Real, como era difícil fazer a conta certa com índices tão altos! Vamos comentar um só entre eles.

Há algumas semanas toda a imprensa tradicional dedicou horas e horas para comemorar os 30 anos do Plano Real. É fato que o Plano afastou a inflação alta crônica. O que não se diz e não se comenta é o custo a que tudo isso foi feito. 

Os dois governos a que se credita o mérito do Plano Real foram de Fernando Henrique Cardoso (embora o plano tenha sido aprovado e implantado no governo Itamar Franco). Naqueles tempos o Brasil tinha diagnosticados na economia dois problemas dramáticos – a inflação e a dívida externa. Ninguém falava da divida interna, como se ela não fosse uma questão relevante,  e  não era. 

Os economistas costumam trabalhar suas análises, textos e entrevistas considerando que o governo FHC começou em 1995 com a dívida interna representando um número próximo de 35 por cento do PIB. E teria terminado o oitavo ano de governo 2002 com a dívida interna em torno de 60 por cento.

Lembrem, o governo FHC executou um gigantesco programa de privatizações. Em outras palavras, vendeu quase cem empresas estatais, lista que inclui todo o sistema de distribuição de eletricidade e todo o sistema de telecomunicações, além de CSN, Vale, Banespa e outras, muitas outras. Pense, o governo vendeu esse patrimônio todo e a dívida não caiu. Qual é a explicação? 

Tem mais.

Os governos FHC são muito elogiados pela imprensa e pelo mercado. E ambos costumam ter como regra sagrada nunca, jamais aumentar a carga tributária, ou seja, a proporção da arrecadação em relação ao PIB. Pois bem, os governos FHC, de 1995 a 2002 aumentaram a carga tributária de algo como 24 por cento do PIB para 33 por cento. Uau! O salto não é grande, é gigantesco.

Mas parece que ninguém viu, ninguém sentiu, ninguém notou. Estranho.

Agora, veja as três questões em perspectiva. A carga tributária aumentou enormemente e o governo vendeu estatais como nunca. E a divida interna praticamente dobrou como proporção do PIB, pulando de 35 por cento para 60 por cento, ou um pouco mais. Ou seja, arrecadou mais cobrando mais imposto e arrecadou mais vendendo grandes empresas estatais. E ainda assim a dívida interna explodiu. 

Estranho, né? Sim, porque estamos comemorando tudo que se refere a este período. A festa de 30 anos do Plano Real é animadíssima, e quase unânime.

Claro, é possível que este texto contenha imprecisões, até erros, é possível que o raciocínio não esteja levando em conta algum fator ou elemento discreto, é possível que haja uma explicação rápida e simples pra tudo.

Mas, considerando que estamos falando de muita grana, uma montanha de oito trilhões de reais, qualquer diferença contábil ou real de apenas 1 por cento, significa uma montanha de 80 bilhões de reais. Para mais ou para menos, contra ou a favor do país, contra ou a favor de um honesto poupador-credor… talvez se possa dizer com toda a convicção que a proposta de Auditoria  Cidadã é boa, útil, necessária, indispensável, inadiável.

Como agora o Banco Central tem autonomia e não tem chefe político, ele pode fazer essa Auditoria, agindo com toda boa vontade e toda boa fé.

PS: quer saber quanto vale em dinheiro hoje 25 por cento do PIB? Uns 3 trilhões de reais. A preço de hoje seria quanto teria subido a dívida pública interna nos 8 anos do Plano Real. Cabe uma auditoria.