“Pisando firme sem medir nenhum segredo/ Participando sem medo de ser mulher / Pra mudar a sociedade do jeito que a gente quer/ Participando sem medo de ser mulher”. O canto da professora aposentada Maria do Socorro Fernandes de Castro, de 58 anos, se amplia em cada uma das pessoas que fazem parte das 160 famílias da Comunidade Quilombola da Serra do Evaristo, em Baturité, no Ceará. Na firmeza do timbre e da palavra viva, Socorro carrega ancestralidade, religiosidade e coragem, preenchendo as veredas, casas e existências de um lugar que tem muito orgulho da história vivida e compartilhada.
“Sou nascida e criada nesse Quilombo, casada e mãe de três filhas. Para mim, a mulher quilombola representa a luta, a resistência, essa alegria que a gente tem de viver. E também preserva a memória, os costumes, os saberes”, define.
A Comunidade da Serra do Evaristo foi reconhecida como remanescente quilombola em 2010 pela Fundação Cultural Palmares. A comunidade é um dos 68 territórios quilombolas existentes no Ceará, segundo o Censo Demográfico de 2022.
Na trajetória pelo reconhecimento, Socorro consolidou-se com uma liderança. “Eu iniciei essa luta com idade de 14 anos, começando a participar dos movimentos. Sofremos muito para construir esses movimentos. Nossos ancestrais fizeram muita coisa e são inspiração para nós, mas, quando eles ficaram mais idosos, nós tivemos que dar continuidade. E hoje ainda estamos resistindo, repassando essa história, é uma construção”, recorda Socorro, que também é mestra da Cultura reconhecida pelo Município de Baturité.
A Associação Comunidade Kolping da Serra do Evaristo tem mais de 50 membros associados, sendo a maioria composta por mulheres
Protagonismo
A construção à qual a líder quilombola se refere também se relaciona às reivindicações dos movimentos negros sobre como o Brasil lida com seus marcos e personagens históricos. É o que explica a Cícera Barbosa (Cícera Preta), professora de História, mestranda pela Universidade Federal do Ceará, curadora e pesquisadora das Celebrações de Liberdade e os Sentidos de Liberdade da Luta Negra no Ceará.
De acordo com Cícera, o Ceará, que sustenta o título de Terra da Luz pelo pioneirismo de decretar o fim da escravidão em 1884, quatro anos antes do restante do Brasil, manteve em destaque nas narrativas somente os feitos das pessoas brancas.
“Em 1984, quando teve o Centenário da Abolição no Ceará, os jornais do estado se projetaram como esse lugar onde primeiro foi iluminado. Um jornal vai dizer que o grito [de liberdade] foi tão forte que a princesa Isabel ouviu lá no Rio de Janeiro. Na verdade, quando a gente olha para o Centenário e para as figuras que são homenageadas e celebradas, não são as figuras que estiveram à frente dos processos de luta pela liberdade. Desde então, vamos lutar para construir outros marcos dessa liberdade, com o movimento negro organizado”, enfatiza.
Os marcos históricos revelam, explica Cícera, as resistências e movimentos abolicionistas registrados em todo o território na época. A Vila do Acarape, atual Redenção, por exemplo, aboliu o regime em janeiro de 1883 – outras cidades cearenses também assinaram no mesmo ano. O Brasil, por sua vez, só iria decretar o fim da escravidão em 13 de maio 1888, com a Lei Áurea assinada pela Princesa Isabel.
“Em 1884, no 25 de Março, foi assinada no Ceará uma Lei que é de movimentos que já aparecem nas fontes desde a metade do século XIX, com as greves dos jangadeiros, o não envolvimento de alguns sujeitos nesse tráfico interno. Tínhamos a proibição da compra de pessoas do outro lado do Atlântico, mas tínhamos aqui a ida dessas pessoas para o Sul e Sudeste do Brasil. Então, quando cearenses desse território decidem não enviar mais companheiros para o Sul e Sudeste, o comércio é travado. Começamos a ter festas de rei do Congo, umbigadas. Uma série de pessoas vivendo o cotidiano aqui e lutando por essa liberdade”, completa Cícera.
Entre esses cearenses, a pesquisadora destaca o protagonismo de pessoas como o jangadeiro Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar ou Chico da Matilde, da Preta Tia Simoa e Ana Sousa, a Aninha Gata. “Junto com o Dragão do Mar tinha várias outras pessoas, como o José Napoleão. Também tínhamos a Tia Preta Simoa, essa mulher fica na história porque ela ganha a dimensão de ser uma pessoa querida, líder, e também mobilizar a greve dos jangadeiros de 1881. Se conquistamos a liberdade em 1884, é porque a Tia Preta Simoa vai mobilizar as pessoas da região da Praia do Peixe, onde hoje localizamos o Centro Dragão do Mar e a comunidade do Poço da Draga, que vão inventar várias estratégias para impedir esse tráfego e essa venda”, detalha.
Estátua do Dragão do Mar localizada no Centro Cultural do Estado, em Fortaleza, que leva o seu mesmo nome
Cícera defende que as identidades negras dos ex-escravizados e dos remanescentes não sejam vinculadas à lógica violenta e cruel da escravidão. “A gente tem se dedicado a construir novos sujeitos para essas cidades e territórios que tenham consciência da história. Se a gente olhar para trás, quem violentou, escravizou, bateu, não foram os nossos. Quando olho para o passado, por mais que eu não tenha o brasão da minha família, tenho muito orgulho de contar a história dos meus pais, dos meus avós, dos meus ancestrais”, afirma.
Desconstruir narrativas
O outro olhar para o passado tem sido importante para desconstruir narrativas como a de que no Ceará não tem pessoas negras. Isso reflete, inclusive, no crescimento da população que se declara preta no estado. Segundo o Censo Demográfico de 2022, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 6,8% da população cearense é preta. Um aumento de 51,7% em relação ao Censo de 2010.
“A branquitude usa de diversas linguagens, estratégicas, para apagar a história da população negra e para impedir que nossos direitos sejam cumpridos. Apesar do racismo, a população negra usou de outras táticas para sobreviver: a oralidade, os feitiços, as imaginações, a oralidade. Não se reduzir nem se submeter aos padrões da branquitude talvez tenha sido a nossa arma mais forte”, acrescenta Cícera.
Cícera é uma das curadoras da exposição “Anas, Simôas e Dragões: Lutas Negras pela Liberdade” que está em cartaz no Museu de Arte Contemporânea do Ceará (MAC-CE)
Nesse sentido, o 25 de março, que em 2011 se tornou a Data Magna do Ceará, por meio de lei publicada no Diário Oficial do Estado, é fundamental para conscientizar sobre o protagonismo das pessoas negras em diversos contextos históricos e espaços sociais, assim como no dia 20 de novembro.
“Esse vai ser o primeiro ano em que vamos ter feriado no dia 20 novembro. É um feriado que fala sobre conscientização negra, que é entender que nós, negros e negras, somos sujeitos de direitos. E essa sociedade precisa entender que somos diferentes, mas não é a partir dessas diferenças que se dá um processo de injustiça ou violação de direitos”, avalia.
Esse exercício, aponta a pesquisadora, também passa pela educação. Em 2003, foi assinada a Lei Federal nº 10.639/2003 que incluiu no currículo das redes de ensino a temática da História e Cultura Afro-Brasileira. No Ceará, desde 2005, a Secretaria Estadual da Educação (Seduc) desenvolve ações para fortalecer esse ensino, em atendimento às demandas legalizadas e reivindicadas pelos movimentos sociais, em especial da população negra do estado.
Além disso, o Ceará conta, desde fevereiro de 2023, com a Secretaria da Igualdade Racial. O órgão tem no combate ao racismo uma estratégia estruturante das políticas públicas, por meio da implantação de ações valorativas, afirmativas e para o entendimento de que racismo é crime. A secretária da Igualdade Racial do Ceará (Seir), Zelma Madeira, pontua a necessidade de políticas públicas que dialoguem com diversas áreas.
“Quando falamos de composição étnica no Ceará, entendemos que entre pretos e pardos, que é igual à população negra, nós temos para mais de 70% [da população] no último Censo. Então, nós temos problemas a serem enfrentados pela via das políticas de igualdade racial, quer pela dimensão de uma agenda própria como da Igualdade Racial, como também transversal, junto a políticas importantes como a Secretaria, a política de educação, saúde, assistência social, segurança alimentar, e tantas outras”, cita a titular da Seir.
Saberes e legados
Na Serra do Evaristo, a escola tem sido o centro dessa construção e fortalecimento dos saberes para muitas gerações. Gustavo Souza, de 25 anos, é um dos muitos jovens que escolheu a educação quilombola para dar continuidade ao legado de pessoas como dona Socorro.
“Eu sempre fui apaixonado pela educação. Sempre brinquei de ser professor. A educação para mim e para comunidade tem uma importância muito grande. Por meio dela eu passo o que aprendi com os meus antepassados, meus guardiões da memória, dona Socorro, meus avós”, conta Gustavo, que está concluindo Pedagogia na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), no Campus Liberdade, em Redenção.
Quando os jovens ingressam na universidade, toda a comunidade ingressa também. Atualmente, cerca de 25 pessoas da Serra do Evaristo estão no Ensino Superior. “Eu fui o primeiro estudante quilombola a entrar [na Unilab] por um edital específico para estudantes quilombolas e indígenas em 2017 para Pedagogia, o único curso da instituição a aderir esse edital. Eu fui agraciado com essa vaga, e entrei graças à Unilab e aos meus líderes que lutaram muito para que a gente possa ter melhorias e mostrar quem somos de verdade”, defende Gustavo.
A instalação da Unilab, vinculada ao Ministério da Educação, foi um passo importante para a inclusão da comunidade afrodescendente no Ensino Superior, além da aproximação e cooperação cultural e científica com os países de língua portuguesa da África. Além de estar presente no Ceará, nos campus de Redenção e Acarape, a Unilab também tem campus em São Francisco do Conde, cidade da Bahia.
Contudo, antes da sala de aula, é no cotidiano que a comunidade aprende e ensina sobre algo muito característico do local: a coletividade. É como exemplifica o agricultor e líder quilombola Luiz Marques, de 65 anos. “A gente vê com bons olhos a união que tem esta comunidade. Aqui não existe algo que faça alguns se desviarem de outros. Se tenho uma banana, vou dividir com quem não tem. Se estou um problema na minha cultura [agricultura], vou tentar fazer com que ela possa se levantar. É nessa função que vivemos em nossas atividades”, reconhece Luiz Marques.
Luiz se orgulha da sabedoria que aprendeu no campo, no plantar e compartilhar alimentos que hoje são reconhecidos para além dos limites da Serra do Evaristo. “Na minha mocidade, a gente trabalhava com a cultura do algodão, urucum, mandioca e cajueiro. Resolvemos fazer a troca dessas culturas para outras culturas, como a banana pacovan. Ela foi a primeira banana que teve o direito de atravessar as fronteiras para outro país, tanto que hoje a banana da Serra do Evaristo, para todo o Maciço de Baturité, é uma das melhores do nosso município”, conclui.