Artigo do jornalista Luís Nassif no site Jornal GGN:
O bolsonarismo é um buraco negro, que se alimenta da falta de projetos e de ideais de uma comunidade. É nas cabeças vazias que se plantam os discursos de ódio, teorias conspiratórias, que se desconstroem valores, instituições, que se implanta a selvageria.
A cada dia que passa, a volta do bolsonarismo torna-se uma ameaça cada vez mais concreta porque não tem pela frente um projeto sequer de país, uma ideia agregadora, um pingo de auto-estima nacional. É um país triste que, aparentemente, perdeu a fé no futuro.
Ontem palestrei em um encontro de bancários. No final, algumas questões colocadas ajudaram a encontrar explicações para esse fenômeno.
Uma das pessoas perguntou se o quadro atual refletiria a chamada “doutrina do choque”, sobre a qual escrevi algumas vezes. Trata-se de uma estratégia que veio da psicologia, quando dois psicólogos alemães, no pós-guerra, desembarcaram nos Estados Unidos e lançaram a ideia dos choques elétricos em doentes nervosos. A lógica era que as neuroses derivavam de pensamentos, memórias guardadas no cérebro. Os choques elétricos “zerariam” essas lembranças, permitindo recriar uma nova psique.
Essa maluquice influenciou os tratamentos psiquiátricos, foi incorporada pela CIA nas torturas a prisioneiros e, mais tarde, encampada pela escola de economia de Chicago.
A lógica econômica era simples. Após um grande choque – político, climático – há uma desestruturação ampla das instituições e das próprias relações das comunidades. Deve-se aproveitar para impor um conjunto de princípios – privatização selvagem – que, em outras circunstâncias, não seriam aceitos pela comunidade.
É curiosa a transposição para o Brasil. Em um primeiro momento, o choque do impeachment concedeu os seis meses regulamentares para que Michel Temer e o Supremo Tribunal Federal arrebentassem com direitos trabalhistas, abrissem espaço para privatizações selvagens etc.
Mas, e agora, passado o período Temer, passado o governo Bolsonaro, o que acontece? Aparentemente, há um efeito retardado da teoria do choque. Houve uma enorme energia combatendo o golpe, resistindo a Bolsonaro, ajudando a eleger Lula. Depois, o esvaziamento completo, o ceticismo se espalhando por todos os poros da Nação, a ponto de melhorias pontuais no emprego e no PIB não se refletirem no humor da população.
Aí se entra na segunda parte da novela: o governo Lula. Outra pergunta feita pelo público: qual o espaço que o governo está reservando para a produção nacional no plano da Neoindustrialização recém-lançado, e mesmo nos projetos de transição energética.
O capital externo vem para cá, para explorar riquezas minerais e, em muitos casos, transportando empresas para serem movidas pela energia limpa brasileira. Qual a contrapartida exigida? Nenhuma. Qual o papel do sistema de ciência e inovação, da geração de empregos, da participação do capital industrial brasileiro nos novos projetos? Não se sabe.
Houve dois momentos em que senti, na pele, o orgulho de ser brasileiro. Criança ainda, no governo JK. Toda manhã eu agradecia a Deus o privilégio de ter nascido no Brasil. Mais recentemente, no glorioso período de 2008-2010, que emergiu um Lula estadista inédito, que mobilizou o país contra a crise, articulou o sul global em grandes fóruns.
E agora? Manuel López Obrador sai do governo do México com índices de popularidade similares aos de Lula 2010. Diariamente ele entra em rede nacional, e pelas redes sociais, divulgando seus programas e pautando a discussão da mídia.
Não apenas isso. Criou uma Secretaria de Função Pública para combater a corrupção. Lançou programas sociais como “Sembrando Vida” (de reflorestamento e agricultura sustentável), “Jóvenes Construyendo el Futuro”, oferecendo bolsas de estudo e treinamento para jovens; aumentou as pensões para idosos.
Além disso, investiu na construção de ferrovias conectando várias regiões do México, construiu uma nova refinaria de petróleo, fortaleceu a Pemex (Petróleos Mexicanos) e a CFE (Comissão Federal de Eletricidade), com investimentos significativos para aumentar a oferta de energia pública. Ao mesmo tempo, promoveu a redução dos salários dos altos funcionários públicos, incluindo seu próprio salário. Não teve receio de criar Comissões da Verdade, para investigar desaparecimentos forçados e participou ativamente na melhoria do acordo comercial com os Estados Unidos.
Com um Congresso hostil, e em minoria, com Forças Armadas impregnadas pelo golpismo, não se espere de Lula a mesma atuação de Obrador. Mas alguma coisa precisa ser feita. E Lula não tem feito nada em direção a um projeto de país.
Resistiu a constituir grupos de trabalho para organizar a Neoindustrialização, está absolutamente apático em relação ao boicote empreendido por Roberto Campos Neto, mesmo tendo a possibilidade de organizar todo o setor produtivo em um pacto de desenvolvimento e contra o boicote do Banco Central.
Em 2008, ele conseguiu o apoio dos sindicatos de fabricantes de máquinas e equipamentos, da FIESP, manteve o apoio entusiasmado das centrais sindicais, movimentou o país com as Conferências Nacionais, lançou-se no mundo, liderando o G20, o sul Global.
Cadê esse Lula? Onde foi que se escondeu? O que se passa em sua alma para ter perdido a energia que o credenciaria a ser o mais relevante dos presidentes da República? Quebrou-se alguma coisa no terrível período de prisão, nas campanhas infames da Lava Jato e da mídia? Ou ainda pode-se esperar, a qualquer momento, a volta do Lula de 2008, conduzindo as forças civilizatórias rumo à salvação do país.
Note que não falei em forças da esquerda.
Falei em forças civilizatórias, não necessariamente forças da esquerda, uma bandeira que foi carregada no pós-Constituinte pelo PSDB e pelo PT. Depois, ficou exclusivamente com o PT, com o desmanche do PSDB. E, agora? Há um Brasil civilizado aguardando EL Cid, o Campeador. Que Lula saia da apatia atual e mostre estar à altura do maior desafio da história do país.