Texto do jornalista Valdélio Muniz, analista judiciário (TRT7) e mestre em Direito Privado (Uni7). Membro do Grupo de Estudos em Direito do Trabalho (Grupe-UFC):
A despeito dos avanços propostos pela Constituição de 1988 quanto ao funcionamento dos poderes públicos e à contratação de servidores, muitos órgãos de todos os níveis de governo (municipais, estaduais e federal) ainda se utilizam excessivamente da terceirização de mão de obra não como meio de (duvidável) economia, mas como forma de viabilizar, burlando a regra do concurso, a preservação da arcaica cultura do apadrinhamento na ocupação de postos de trabalho.
Assim, facilita-se a manutenção de trabalhadores indicados por gestores, parlamentares e apoiadores políticos ou cabos eleitorais em sucessivas gestões, mesmo quando encerrados contratos com determinadas empresas e selecionadas outras prestadoras. Na prática, preserva-se antigo costume, apenas com “nova” roupagem: o preenchimento de posto de trabalho na administração pública por meio de “cartão de apresentação” (indicação política). Como ocorre com trabalhadores contratados através da burla à previsão normativa de admissão temporária excepcional (tema do artigo publicado em 17.03.2024 neste espaço) e da permissão constitucional para livre nomeação e exoneração em cargos comissionados (de direção, chefia e assessoramento), de confiança do gestor, tem-se como cláusula “informal” dos contratos terceirizados o dever de engajamento em atos de campanha eleitoral de gestores ou de candidatos apoiados pela gestão (principalmente, mas não apenas, no nível municipal).
Aproveitando-se da dependência econômica e da inexistência de estabilidade do servidor (comissionado, temporário ou terceirizado), ignora-se deliberadamente a liberdade de opção política e ideológica destes trabalhadores sem qualquer preocupação com o constrangimento gerado àqueles que, cientes da separação necessária entre exercício profissional e consciência cidadã, tenham escolhas distintas da que lhes é imposta (assédio eleitoral). Ou participam dos eventos e utilizam suas redes sociais para difundir candidatos “abençoados” pelo gestor ou perdem o posto de trabalho. Ou seja, obtém-se a vaga por indicação política e nela se mantém por incondicional apoio a quem o apadrinhou (ou ao próprio gestor, quando este rompe com o eventual padrinho).
Nos processos judiciais trabalhistas, a realidade frequente é de muitas empresas criadas apenas para celebrar contratos terceirizados com entes públicos e que, quando fecham suas portas (ao final do contrato), deixam trabalhadores entregues à própria sorte, sem o pagamento das verbas rescisórias. Em alguns casos, entes públicos são condenados (subsidiariamente) a desembolsar diretamente aos trabalhadores valores antes liberados a estas empresas sem os devidos cuidados e fiscalização, onerando duas vezes (por descaso) os cidadãos contribuintes.
Para agravar a tristeza desta história, a terceirização praticamente ilimitada tem contado, nos últimos anos, com as chancelas legislativa (Lei nº 13.429, de 2017) e judiciária (Tema 725, do Supremo Tribunal Federal, firmado com repercussão geral no julgamento do Recurso Extraordinário nº 958.252, em agosto de 2018). Tudo sob pretexto de falaciosa modernização administrativa.