Descendente da matriarca que dá nome à Comunidade de Vó Dôla, primeiro quilombo urbano de Vitória da Conquista, a jovem Lara Fábia dos Santos, de 17 anos, cresceu dentro de um terreiro de candomblé. Entre familiares e amigos próximos, nunca teve medo de afirmar a sua fé, mas em outros ambientes, como a escola, por exemplo, sente receio em deixar evidente as suas raízes ancestrais. “A gente já evitava usar roupa de terreiro para não sofrer racismo religioso”, conta a estudante do ensino médio.
Foi no Colégio Estadual Adelmário Pinheiro que a sua religião virou motivo de “piada”. Segundo Lara, inicialmente, ela e outras amigas que frequentam terreiros escutavam comentários pelos corredores. “A gente não prestava muita atenção, até que um dia colegas foram na diretoria dizer que a gente ia colocar o nome delas na boca do sapo”, explica. Diante da situação, a família da jovem foi até a escola, mas a direção só deu a devida atenção ao ocorrido após diversas queixas e cobranças.
Em tom pejorativo, a expressão do vocabulário popular atribui uma “maldade inerente” aos praticantes de religiões afro-brasileiras. Por isso, a atitude se relaciona diretamente com o racismo religioso. Diferente da intolerância, que pode ser praticada contra qualquer segmento religioso, esse tipo de violência possui um fator racial e está ligada ao preconceito contra a população negra.
“Esse racismo religioso é tão forte, é tão impregnado na nossa cultura, que faz com que as pessoas que seguem essas religiões sejam desumanizadas, sendo colocadas como pessoas más. Há uma demonização das práticas de matriz africana”, ressalta a professora Jancileide Souza dos Santos, especialista em História da Arte, Cultura e Patrimônio pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
A situação que ocorreu entre Lara e as colegas de sala demonstra o quanto o racismo está presente nas instituições de ensino. O discurso das alunas para a diretoria expõe uma violência mais direta contra as pessoas adeptas às religiões afro-brasileiras, mas existem outras ações da rotina escolar que, apesar de normalizadas, ferem o direito de crianças e adolescentes à liberdade religiosa.
Lara conta que, em outras etapas da sua vida escolar, já se viu obrigada a participar de momentos de oração, que geralmente envolvem a entoação do “Pai Nosso”, reza muito conhecida do cristianismo. Essa ainda é uma realidade, apesar da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (9.394/1996) considerar o ensino religioso facultativo, além de assegurar o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil.
Dor e violência
Mesmo com o direto à liberdade religiosa previsto na Constituição Federal de 1988, na prática, muitas crianças e adolescentes adeptos às religiões afro-brasileiras sofrem cotidianamente os efeitos do racismo. Essa violência pode surgir em diversas formas, desde ofensas disfarçadas de “brincadeiras” até agressões físicas. Na Bahia, existem casos emblemáticos ao mesmo tempo em que há subnotificação e ausência de dados específicos, conforme apontou reportagem do Brasil de Fato, de janeiro deste ano.
Em Vitória da Conquista, o pequeno Miguel Lorenzo, de apenas cinco anos de idade, foi agredido por pelo menos seis crianças mais velhas dentro de uma van escolar. Tudo começou quando ele contou animado para os colegas que seria iniciado como Ogã na casa de candomblé que frequenta com sua mãe, Thaise Rocha. No interior do veículo, ele teve a mão perfurada por uma caneta, além de ter recebido mordidas e chutes pelo corpo. Os responsáveis pelo serviço não interferiram.
No dia seguinte, a empresa apenas informou que não poderia mais transportar Miguel. Segundo Thaise, a recuperação do filho foi lenta. Ele sentia dor, chorava e tinha medo de retornar à escola. O processo de verbalizar o que havia acontecido também levou tempo. O menino tinha receio de que a sua iniciação como Ogã fosse adiada, caso revelasse que esse tinha sido o motivo da agressão.
Apesar da dor e das cicatrizes que persistiram por um tempo, Miguel não esconde a alegria e o orgulho em ser candomblecista. Quando perguntado sobre a importância da religião em sua vida, sua resposta foi sucinta e direta. Em alto e bom tom, afirmou: “Xangô, Orixá da justiça, dos raios e dos trovões”. Em seguida, entre risadas e brincadeiras, contou à nossa reportagem: “Tia, eu toco tambor”.
Segundo a professora Jancileide Souza dos Santos, o que aconteceu com o pequeno Miguel acontece com muitas outras crianças em todo o país. Ela explica que o racismo religioso no ambiente de ensino pode ter inúmeros efeitos negativos, inclusive ocasionando na evasão escolar. “Quando se é adulto já se consegue entender que isso existe e é um problema estrutural, já a criança não tem essa consciência, e nesse momento ela pode negar sua identidade, ocultá-la ou abandonar seus estudos”, destaca.
Aplicação da Lei 10.639
Para a docente da UFBA, o papel da educação no combate ao racismo é primordial. Uma importante ferramenta nessa luta é a Lei 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade da inclusão da História e Cultura Afro-brasileira no currículo oficial da rede de ensino. “A educação deve refletir a riqueza cultural do Brasil e ensinar a importância da diversidade, para que as crianças desenvolvam um respeito genuíno e uma compreensão profunda das diferenças culturais e religiosas,” ressalta Jancileide.
Vinte anos após a sanção da lei, a sua aplicação na prática ainda está longe de ser uma realidade. De acordo com levantamento feito pelo Geledés Instituto em 2023, mais de 70% dos municípios brasileiros não aplicam a legislação. O estudo foi realizado ao longo do ano de 2022, com dados colhidos em 1.187 secretarias municipais de ensino. Esse panorama aponta para um descaso dos gestores públicos com o reconhecimento da contribuição dos povos africanos e afro-brasileiros na história do Brasil.
“Na escola, aprendemos extensivamente sobre a mitologia grega e a história europeia, mas temos uma compreensão superficial da mitologia yorubá,” afirma Jancileide Souza dos Santos. Ela defende que as unidades de ensino devem incorporar a cultura afro-brasileira no currículo de forma significativa, utilizando a literatura e outros recursos pedagógicos para tornar esses temas acessíveis.
Em Conquista, foi aprovada uma resolução pelo Conselho Municipal de Educação (CME) que criou a disciplina História e Cultura Africana e Afro-Brasileira para compor o currículo da rede municipal de ensino. Mas colocar isso em prática ainda é um desafio. No dia 1º deste mês, o Sindicato do Magistério Municipal Público (Simmp) destacou, em nota, a necessidade de garantir uma formação continuada dos professores para que possam aplicar a Lei 10.639/2003 de maneira eficaz e crítica.
“Conquista está entre os 10 municípios do país com maior número de comunidades quilombolas, mas em contrapartida está incipiente na aplicação das políticas públicas de promoção da igualdade racial. […] A escola, que deveria ser um espaço de emancipação e igualdade, acaba reproduzindo as desigualdades raciais, sociais e de gênero”, diz o texto do sindicato publicado no mês da Consciência Negra.
Apesar de tudo, resistir
Enquanto as escolas ainda não colocam em prática o que diz a Lei 10.639/2003, outros espaços de educação buscam deixar em evidência a cultura africana e afro-brasileira. Na Comunidade de Vó Dôla, no bairro Pedrinhas, Laiz Gonçalves, tia da jovem Lara Fábia dos Santos, coordena a Kilombeco, biblioteca comunitária que atende cerca de 30 crianças a partir dos dois anos de idade. Nesse espaço, meninas como Isadora Oliveira, de 7 anos, tem acesso à literatura focada no protagonismo negro.
Com sua avó Maria Petronilha, mais conhecida como Vó Dôla, Laiz aprendeu todos os fundamentos da umbanda, e com sua mãe, os passos do candomblé de Angola. Durante a trajetória escolar, sofreu racismo religioso, assim como sua sobrinha. “Eu e minhas primas dizíamos que éramos espíritas e católicas, nunca do candomblé. Tinha dias que as pessoas nos viam e diziam ‘lá vem as neguinhas macumbeiras do beco’. Era como tomar uma facada”, conta a liderança comunitária.
As ofensas e insultos racistas fizeram as primas de Laiz abandonarem a escola. Ela também acabou seguindo o mesmo caminho, mas por outros motivos. Um tempo depois retomou os estudos, concluiu as etapas do ensino médio e, mais recentemente, pôde ingressar numa faculdade. Com o passar dos anos, ela percebe que algo mudou, mesmo que ainda haja muita violência incitada pelo racismo.
“Hoje os meninos conseguem chegar na escola e dizer que são candomblecistas, coisa que eu e minhas irmãs não tivemos oportunidade porque o racismo nos deixou paralisada. O racismo não te deixa falar, não te deixa opinar, porque ele te prende e te empurra pro lado que o outro quer, te impede de existir”, desabafa Laiz Gonçalves, que atua como articuladora social e cultural do Beco de Vó Dôla.
Para a professora Jancileide Souza dos Santos, é fundamental que as escolas se tornem espaços onde o racismo é combatido diariamente. “Os profissionais da educação devem estar preparados para enfrentar e desmantelar o racismo religioso e outras formas de discriminação. E a escola deve ser um local de aprendizado e inclusão, onde cada criança é valorizada por sua identidade e cultura”, finaliza.