Artigo do professor Antônio Carlos Will Ludwig, aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em Educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes) – o texto abaixo foi originalmente publicado pelo site Consultor Jurídico:
De maneira singular e iniludível, o civismo diz respeito à exteriorização de comportamentos que demonstram a responsabilidade e o comprometimento do cidadão em relação à sociedade onde vive. Tais condutas requerem o conhecimento de seus direitos e deveres e a busca pela promoção do aninho da coletividade. Exigem também a valorização da diversidade e o combate à discriminação com vistas à arquitetura de uma sociedade justa, democrática e solidária. O civismo é fundamental para a construção e manutenção de uma democracia saudável, onde os cidadãos se sentem motivados a participar ativamente no processo político e contribuir para o bem-estar comum.
Muitas vezes, ele é inadequadamente usado como sinônimo de patriotismo, um impassível, romântico e extemporâneo sentimento de orgulho e devoção à pátria, frequentemente desligado dos valores democráticos, dos direitos humanos e da justiça social. Em dose exagerada, também pode se harmonizar com o nacionalismo, uma idealização defensora da plena soberania de um país e mantenedora da identidade étnica e cultural única, tendente a se mostrar perigosa, haja vista a vigência do nazismo na Alemanha.
Ao longo da história o civismo se exibiu em formas variadas. Inicialmente, apareceu de maneira destacada em duas localidades. Na Grécia Antiga, especialmente na cidade-estado de Atenas, era ligado à participação ativa do cidadão na esfera pública. Em Roma, abarcava as ideias de pertencimento e de deveres para com o Estado. Na Idade Média, se encontrava ligado ao cumprimento de obrigações e à lealdade ao senhor feudal. Na modernidade, emergiu o fortalecimento da participação do cidadão na política. Independentemente de classe social ou origem, todos devem ter voz e voto nas decisões que afetam suas vidas.
Marcas do civismo
No período contemporâneo, três ocorrências marcaram o civismo: a globalização, o neoliberalismo decadente e a suposta e contestável pós-modernidade. Embora a globalização traga benefícios, tende a diluir identidades culturais e locais, fazendo com que o civismo seja mais desafiador, especialmente em um mundo onde as questões locais podem ser eclipsadas por preocupações globais. No entanto ela também pode promover a solidariedade entre nações e povos.
O neoliberalismo inclina-se a exacerbar as desigualdades sociais e gerar uma enorme quantidade de cidadãos em estado de vulnerabilidade, os quais tendem a se sentir excluídos do processo político e desmotivados a participar, o que enfraquece a democracia. Porém, em resposta às falhas das políticas neoliberais para garantir bem-estar social, o civismo pode incentivar a solidariedade e a ação coletiva em prol de soluções comunitárias.
Em relação à presumível e questionável era pós-moderna constata-se um abalo na visão tradicional e homogênea de cidadania. O civismo tende a ser visto como uma expressão de identidade individual e coletiva e não apenas como um dever social. A comunicação instantânea e a mobilização digital que lhes são próprias permitem que indivíduos se organizem em torno de causas específicas, trazendo à luz questões que, anteriormente, poderiam ter passado despercebidas. No entanto, essa mesma tecnologia também pode gerar polarização e desinformação, o que desafia a prática do civismo informado e responsável.
Diretrizes no exterior que asseguram o civismo
Embora existam múltiplos fatores que condicionam a dinâmica do civismo, ele se apresenta como algo de muito valor social, haja vista a outorga de garantia legal à sua presença e continuidade em uma grande quantidade de países. Por exemplo, na Suíça, nação considerada modelo em relação à estabilidade institucional, à segurança jurídica e à transparência das ações governamentais, é adotada uma diretriz que garante o amplo envolvimento dos cidadãos nas decisões mais relevantes da vida política nacional, a qual se apoia nos mandamentos contidos na Carta Magna.
Seu artigo 5º estabelece que o princípio da subsidiariedade deve ser observado na atribuição e no desempenho das tarefas do Estado. Tal princípio impõe a descentralização jurídica administrativa garantidora da derrama do poder aos cantões, às comunas e à múltiplas organizações atuantes na sociedade. O artigo 6º fixa que cabe a todos contribuir para a realização das tarefas do Estado e da sociedade. O artigo 33 determina que toda pessoa tem o direito de fazer petições às autoridades e o artigo quarenta e cinco prevê que é assegurado aos cantões participarem do processo decisório federal. Sustentado neles os suíços frequentemente convocam referendos para aprovar ou rejeitar leis, bem como propor novas legislações.
Spacca
Pertinente à Itália concerne apontar também os tópicos constitucionais amparadores da manifestação cívica. O artigo terceiro diz que cabe à República garantir a efetiva participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do país. O 18 assevera que os cidadãos têm direito de se associarem livremente, o 21 estabelece que todos têm o direito de manifestar livremente o próprio pensamento, e o cinquenta coloca que os cidadãos podem encaminhar petições às Câmaras para solicitar medidas legislativas ou expor necessidades comuns. Baseado nesse apoio, os italianos costumam usar o mecanismo do referendo par sancionar ou vetar leis.
A Alemanha, do mesmo modo, adota medidas amparadoras. O artigo 8 da Constituição expõe que os alemães têm o direito de se reunirem pacificamente e sem armas, sem notificação ou autorização prévia. O 9 menciona o direito de constituir associações e sociedades e o dezessete declara que qualquer pessoa tem o direito de apresentar por escrito, individual ou coletivamente, petições ou reclamações às autoridades competentes e aos órgãos de representação popular. Levando em conta tais mandamentos os germânicos, periodicamente, se utilizam do recurso da iniciativa popular, para fazer proposições de leis alternativas.
Direitos fundamentais da União Europeia
Mais importante do que as determinações constitucionais destes e de outros países europeus são as prescrições contidas na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, a qual abarca todas as coletividades nacionais que as integram. Seu artigo 11 enuncia que é assegurado a qualquer um a liberdade de opinião e de receber e transmitir informações ou ideias, sem que possa haver ingerência de quaisquer poderes públicos e sem consideração de fronteiras. O 12 fixa a liberdade de reunião pacífica e de associação em todos os níveis, nomeadamente nos domínios político, sindical e cívico. O 44 narra que qualquer pessoa singular ou coletiva com residência ou sede social num Estado-Membro, goza do direito de petição ao Parlamento Europeu.
Com o suporte outorgado por esta Carta, os europeus, com bastante frequência, são induzidos a praticar o engajamento cívico ou a cidadania ativa. Atualmente dezenas de milhões de pessoas se encontram exercitando o trabalho voluntário em vários setores, tais como ajuda a refugiados e migrantes com o oferecimento de apoio linguístico, assistência legal e orientação sobre serviços locais; preservação ambiental, como limpeza de praias, reflorestamento e campanhas de conscientização sobre sustentabilidade; ajuda a grupos de idosos e pessoas com deficiência por meio de companhia, assistência em atividades diárias ou apoio em instituições especializadas; programas de alfabetização, habilidades digitais e preparação para o mercado de trabalho destinados a jovens e atividades recreativas em instituições de saúde, hospitais, lares de idosos e centros de reabilitação.
Milhares de petições foram encaminhadas ao Parlamento Europeu em 2023 relacionadas à área ambiental, com vistas a reduzir as emissões de carbono e promover a sustentabilidade; à proteção dos direitos humanos, incluindo questões de igualdade de gênero, direitos LGBTQIA+, e a situação dos migrantes e refugiados; a melhorias nos sistemas de saúde, acesso a vacinas e medicamentos; à necessidade de apoio a pequenas e médias empresas e de políticas que promovam a recuperação econômica e a criação de empregos; a iniciativas que melhorem as condições educacionais da juventude e promovam a mobilidade estudantil; mais transparência nas instituições da UE e um fortalecimento da participação democrática dos cidadãos nas decisões políticas, através de mecanismos que permitam uma maior interação entre os representantes e a população.
Acrescente-se ainda os inúmeros plebiscitos e referendos que ocorreram nos últimos anos em diversos países, tais como na Suíça sobre controle de armas e igualdade salarial, na Espanha quanto à independência da Catalunha, na França a respeito da inclusão de uma cláusula ecológica na Constituição, na Itália relativo à diminuição de parlamentares, na Irlanda concernente à questão do aborto e na Eslovênia pertinente aos recursos hídricos.
Engajamento cívico nos EUA
Por sua vez, de maneira diferente da Europa, nos Estados Unidos, o civismo possui égide legal estadualizada. Com base nela os estadunidenses também realizam, de modo frequente, o engajamento cívico. Observe-se que em 18 dos entes subnacionais é possível propor emendas constitucionais. Em 21 deles é permitida a elaboração de projetos de inciativa popular, inclusive em nível municipal. Em vinte e três ocorre a prática do referendo. E em 49 é aceita a colocação de projetos de emendas à Constituição estadual na cédula de votação. Frente a estas possibilidades os norte-americanos costumam exercitar bastante a democracia direta.
Com efeito, nos últimos anos em Illinois e Nova York ocorreram referendos sobre a legalização da maconha para uso recreativo. Estados e cidades, como a Califórnia e Seattle, realizaram plebiscitos para aumentar o salário mínimo resultando em aumentos significativos para trabalhadores em várias regiões. Alguns estados, como Michigan e California, realizaram referendos para garantir ou proteger o direito ao aborto, os quais fortaleceram a legalidade em suas respectivas jurisdições. Em outros aconteceram ainda referendos e plebiscitos sobre questões de saúde, aprimoramento eleitoral e reforma da polícia.
Outrossim, os cidadãos estadunidenses possuem o hábito de praticar o trabalho voluntário. De forma parecida aos europeus, muitas dezenas de milhões deles se encontram envolvidos nesse mister. Quantidades elevadas de voluntários se encerram em projetos que visam melhorar suas comunidades locais, como limpeza de parques, revitalização de áreas urbanas e organização de eventos. Atuam como tutores para crianças e jovens, ajudando em matérias escolares, oferecendo apoio em atividades extracurriculares ou promovendo programas de alfabetização.
Existem muitos projetos dedicados a ajudar pessoas sem-teto, famílias de baixa renda, imigrantes e refugiados envolvendo a distribuição de alimentos, roupas e oferecimento de serviços de aconselhamento. Diversos grupos de pessoas atuam em organizações de saúde, oferecendo suporte a hospitais, lares de idosos ou clínicas e inclusão de visitas a pacientes, apoio em campanhas de vacinação ou organização de eventos de saúde comunitária. Atividades de proteção ambiental como plantio de árvores e limpeza de praias ao lado do cuidado a animais abandonados e prestação de socorro em situações de emergência e desastres naturais são comuns.
A democracia no Brasil
No Brasil, a Constituição instituiu o sistema de democracia semidireta. Assim sendo, nosso regime político engloba a dimensão representativa por meio dos candidatos selecionados pelo voto popular e a dimensão participativa através dos mecanismos de referendo, plebiscito e projetos de iniciativa popular. De fato, o parágrafo único do artigo 1º determina que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição, sendo que ambas dimensões se encontram estabelecidas no artigo 14 com seus incisos 1 a 3. Além dele há o inciso dezesseis do artigo quinto, o qual reza que todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente.
Portanto, o exercício do civismo por parte dos brasileiros se encontra devidamente respaldado na Carta Magna, capaz de estimular sua concretização. É impossível minimizar então o poder desta previsão legal no exercício da cidadania ativa. Consequentemente, não é por acaso que tais mecanismos já foram postos em prática. Veja-se que nos últimos 60 anos emergiram quatro plebiscitos: em 1963 sobre sistema de governo, em 1993 sobre forma e sistema de governo, em 2011 sobre a divisão do estado do Pará e em 2014 sobre a criação de distritos no município de Campinas. Dois referendos aconteceram: em 2005 relativo a armas de fogo e em 2010 relativo ao fuso horário vigente no estado do Acre. Três projetos de iniciativa popular surgiram: o de crimes hediondos em 1994, o da ficha limpa em 2010 e o de combate à corrupção em 2016.
Quanto ao trabalho voluntário, estima-se que cerca de 5 milhões de brasileiros se encontram envolvidos em atividades de assistência social voltadas ao apoio a comunidades carentes, distribuição de alimentos, roupas e outros itens essenciais; de educação com tutoria, aulas de reforço e alfabetização de adultos; de saúde cobrindo ações em hospitais, ajuda a pacientes e campanhas de vacinação; relacionadas ao meio ambiente agregando limpeza de praias, e reflorestamento; proteção a animais através do resgate, prestação de cuidados, auxílio a abrigos e campanhas de adoção; direitos humanos incidente em minorias e imigrantes; apoio a idosos por meio de acompanhamento ladeado de atividades recreativas.
E fazendo uma equiparação com outros países, verifica-se que os brasileiros concretizam diligências altruísticas semelhantes às materializadas pelos europeus e estadunidenses. Porém, o número de participantes se mostra bem menor. Pertinente aos atos de democracia direta a equivalência também se evidencia embora de maneira bem menos frequente que eles. Constata-se também em nosso país a falta de certos recursos lá presentes desde há muito tempo que ampliam e fortalecem o protagonismo dos cidadãos.
Podem ser mencionados o recall político, viabilizador da remoção de autoridades públicas eleitas, adotado nas esferas estadual e municipal dos Estados Unidos, e o abberufungsrecht na Suíça, que pode provocar a dissolução de Câmaras e Assembleias do Parlamento ou Congresso antes do fim do mandato de seus integrantes. Em período recente, foi proposta a adoção de um recall judicial autorizador de anulações de decisões no âmbito da Justiça relacionadas a questões que contrariam a vontade majoritária do povo ou que sejam inconstitucionais. Não resta dúvida que tal proposta se revela como uma valiosa contribuição ao aprimoramento da democracia no Brasil.