Osvaldo Euclides de Araújo: “A realidade importa cada vez menos”

Artigo do jornalista e economista Osvaldo Euclides de Araújo, publicado no site Segunda Opinião:

Qualquer empresário ou profissional de marketing sabe que há alguma diferença entre realidade e percepção. Sabe também que a realidade é percebida das mais diversas maneiras, conforme o olhar e a perspectiva de cada um. Essa leitura que cada um pode fazer da realidade chama-se percepção. A realidade é dada, fato concreto, real, ela simplesmente acontece e impõe-se. A percepção é diferente. A percepção pode ser elaborada, construída, reforçada, consolidada.

No mundo dos negócios, a percepção é mais importante do que a realidade. Os produtos e serviços precisam ser comprados e vendidos. Produtos e serviços atendem a necessidades e desejos. É trabalho dos empresários e dos profissionais de marketing fazer a conexão entre os produtos e serviços de um lado, e de outro lado as necessidades e desejos da população. Daí em diante o esforço é de comunicação. Pode-se criar uma marca, fixar os seus atributos essenciais, ou seja os atributos que o empresário quer que sejam percebidos, e através da propaganda colocar esse (digamos) posicionamento da marca (percepção desejada) na mente de cada potencial ou efetivo consumidor.

Essa ideia bem-sucedida no mundo dos negócios foi transportada com sucesso para o mundo da política. Candidatos em todas as partes do mundo procuram compreender quais são as necessidades e desejos da população e fazem um discurso político que possa ser percebido como capaz de atender a essa demanda. E pedem votos. Assim a política e a democracia também entram no esquema institucionalizado do marketing, da propaganda, da comunicação. E também podem trabalhar mais a percepção do que a realidade. 

No processo de administração pública, ao longo de mandatos, governantes também incorporaram a seus processos e projetos de gestão essa ideia de diferença evidente entre realidade e percepção, e o trabalho focado na construção, fortalecimento e consolidação de uma percepção. Então temos que governantes governos e gestão pública buscam posicionamento na mente da população da mesma maneira que o empresário busca posicionar sua marca na mente do consumidor.

No momento exato em que vivemos esta diferença entre realidade e percepção está claramente configurada na economia brasileira. Todos os índices de desempenho estão positivos ou melhorando, mas a percepção da população está ruim ou piorando. 

Vamos tentar uma abordagem didática desta questão em governos recentes e no atual. 

Governo FHC-PSDB, anos 1995-2002. À exceção da inflação, todos os índices de desempenho da economia do país eram ruins ou péssimos. Entretanto, FHC era festejado de forma quase unânime, o foco no Plano Real. 

Governo Dilma-PT, anos 2011-2014. Quatro anos de desempenho mediano e o país era dado, a partir de 2013, como à beira de um abismo, clima de emergência. 

Governo Bolsonaro, anos 2019-2023. Até em função da epidemia, quatro anos de índices negativos ou muito negativos. Entretanto, a percepção tendia claramente a positiva.

Governo Lula-PT, anos 2023 e 2024 índices de desempenho econômico são regulares, bons ou muito bons. Lula é noticiado e avaliado (agora) como se sua gestão apontasse para um futuro de desastre, tipo “só o presidente não vê”. 

Como explicar? 

Há uma espécie de sistema, algo como uma articulação coordenada que pode proteger ou atacar. Trabalha-se nesse espaço com a diferença entre realidade e percepção. Lembrando: a percepção é mais importante que a realidade, e pode ser construída. E reforçada. E consolidada. 

Quem e como construir uma percepção para um país inteiro? Como reforçar? Como consolidar? 

O fundamental e o básico se estabelecem a partir do momento em que algum grupo hegemônico se torna capaz de articular (sintonizar) seus interesses com a percepção desejada e as possibilidades de comunicação. A partir daí você pode recorrer a instituições, a índices, a análises, a diagnósticos,a profissionais acreditados, até mesmo a políticos e construir, reforçar e consolidar um posicionamento na mente da população. Essa “máquina” de convencimento vira uma onda avassaladora. 

Veja uma lista de elementos que podem fazer e costumam fazer parte de um articulação coordenada:

  1. Taxa de câmbio ou cotação do dólar. De segunda a sexta todos os meios de comunicação costumam divulgar várias vezes ao dia o valor do dólar em reais ou câmbio ou cotação. Dólar subindo é ameaça, assim se percebe. 
  2. Bolsa de valores. O índice da bolsa de valores brasileira é também divulgado de segunda a sexta-feira em todos os meios de comunicação, o dia inteiro. Jornalistas sabem que há uma mensagem explícita de otimismo se a bolsa sobe, ou de pessimismo se a bolsa cai. Mesmo que a bolsa só negocie ações de umas quatrocentas empresas, elas são as maiores e melhores. 
  3. Taxa de juros da dívida pública. É a remuneração que incide sobre uns oito trilhões de reais. Como a bolsa e o câmbio, nem precisa haver um fato pra virar notícia. Basta, digamos, noticiar expectativas, sugerir ou especular tendências ou meras possibilidades. 
  4. Taxa de inflação. O Brasil tem diversos índices de inflação, se a sua divulgação se espalha ao longo de semanas, a cada mês, quando também são informadas, além da taxas dos últimos 30 dias, o acumulado no ano e o acumulado em 12 meses. Essa diversidade de dados permite que essas variadas informações possam ser usadas quase o tempo todo, repetindo-se ou dando-lhe ênfase conforme o interesse do editor. Do mercado.
  5. Crescimento do PIB. Além de fontes públicas oficiais, algumas instituições privadas costumam acompanhar e fazer previsões, de maneira que o crescimento da economia, medido pela variação do PIB, posso ser acompanhado semanalmente pelo menos. De novo, expectativas, tendências, previsões, tudo vale no jogo de percepções. 
  6. Agências de classificação de risco. Existem três grandes agências que são ainda acreditadas no mundo inteiro pelos mercados e pelos agentes. Elas divulgam índices que representam a classificação do risco de um país, de uma empresa ou de uma instituição bancária. Padronizadas, essas classificações, quando divulgadas, afetam expectativas e o comportamento dos agentes econômicos, injetando otimismo ou pessimismo, confiança ou desconfiança, conforme o caso. E as três agências costumam andar na mesma direção, no mesmo ritmo.
  7. Pesquisas de opinião. Não é desprezível o número de instituições privadas que fazem avaliações do humor e da disposição da opinião pública (percepção, não fato). Também são pesquisados públicos específicos, conforme a conveniência e as circunstâncias. Em função do crescimento do número de institutos de pesquisa, e em função de haver cada vez mais patrocinadores para a realização dessas pesquisas, elas estão cada vez mais presentes no noticiário de todos os meios de comunicação. Pesquisas podem legitimar pautas, introduzir ou fixar conceitos, sugerir tendências e comportamentos…
  8. A imprensa. A imprensa tradicional brasileira sempre teve e continua a ter suas preferências políticas e suas afinidades ideológicas. É notório que as manchetes de jornais, televisões, rádios e revistas refletem essas preferências e afinidades. Mas esta tendência numa direção específica não fica só na manchete, ela se estende ao conteúdo da notícia, ao destaque da matéria, aos editoriais, a análises e a todas as pautas, de maneira que o que interessa costuma ficar em tensão permanente, como se fosse a questão crítica, quando é apenas o interesse específico dominante. 
  9. Entidades empresariais. As associações de empresários costumam ser ouvidas pela imprensa, numa frequência e com um destaque, que nenhuma outra associação (de trabalhadores , de servidores públicos, de profissionais liberais…) costuma receber ou merecer.
  10. O mercado. O mundo do dos negócios acostumou-se a ouvir referências sobre uma instituição chamada “mercado “, atribuindo a ela uma autoridade e uma legitimidade acima de qualquer outra. As ditas “expectativas racionais“ do “mercado” chegam à população, aos contribuintes e consumidores, com a força especial, a força das verdades sagradas. 
  11. O economista. Este profissional é demandado pela imprensa o tempo todo para dar um tom de ciência a opiniões nem sempre consistentes. O fato é que já há no próprio mercado um quadro de economistas cujas opiniões já são previamente sabidas, que têm tendências a apoiar especificamente certo tipo de pensamento, certo tipo de interesse, certo tipo de política pública, e ao mesmo tempo atacar, ferozmente às vezes, qualquer pensamento ou ideia contrária. Evidentemente, os profissionais não afinados com as ideias coerentes com a percepção desejada são “desplugados”, ignorados. 

De propósito, deixamos de fora as redes digitais (ditas sociais). Com capacidade de atingir quase todo mundo com texto, imagem e som individualmente planejados, a baixo custo, cardápio de temas aberto, com disposição de mentir e de agir fora da lei… essa é outra história. 

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