Texto do fotojornalista João P. Guimarães, no site The Intercept:
“Eu quero a sua exoneração!”
Foi assim, com palavras como flechas no ar, que Auricélia Arapium se dirigiu ao secretário de Educação do Pará, Rossieli Soares, assim que segurou o microfone. Era o quarto dia de ocupação na sede da Secretaria Estadual de Educação, a Seduc, em Belém.
Rossieli, que já foi secretário de Educação de Michel Temer e João Doria e assumiu a pasta no Pará no início do governo de Helder Barbalho, do MDB, havia concordado com um momento de escuta. Chegou no prédio em Belém escoltado por sua equipe e pelo procurador do estado Ricardo Seffer, que tentou acalmar os ânimos com um discurso ingênuo e uma fala mansa. Era preferível ter ficado calado.
Os olhos de Arapium (foto acima) ardiam, não apenas pelo cansaço, mas pelo fogo da indignação. O auditório veio abaixo. Rossieli Soares (foto abaixo) não disse nada.
No final de dezembro, a toque de caixa, a Assembleia Legislativa do Pará aprovou a lei estadual 10.820, que desarticulou programas de ensino em comunidades indígenas e isoladas, rebaixou a remuneração de professores e abriu caminho para a expansão do ensino a distância.
Belém, então, virou um campo de batalha. Professores que protestavam pacificamente foram atacados e arrastados pelo chão pela polícia. Meses antes, Rossieli e Barbalho comemoravam os resultados do Pará no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, o Ideb: o estado subiu da 20ª para a 6ª posição.
Os professores denunciavam que os números foram manipulados, com alunos aprovados sem ter efetivamente aprendido, enquanto a profissão sofreu um desmonte gradual.
A canetada de Barbalho também acabou com os sistemas de ensino modulares adaptados para comunidades ribeirinhas, indígenas, do campo e quilombolas, que enfrentam desafios logísticos, culturais e sociais para ter acesso à educação pública regular. A ideia do governador era acabar com os sistemas modulares, substituindo a presença do professor por televisores e antenas Starlink de Elon Musk.
Nos primeiros dias da ocupação, policiais militares com armamento de guerra e cavalaria tentavam conter os indígenas espirrando spray de pimenta nos banheiros da Seduc. Também proibiram a entrada de comida e doações. À noite, assediavam as indígenas iluminando seu banho com lanternas. Pela manhã, barravam a imprensa. Publicamente, fake news, manipulação da mídia local com falsas entrevistas e bots em redes sociais eram usados para jogar a opinião pública contra os indígenas.
Mas Arapiuns, Mundurukus, Maytapus, Tupinambás, Tembés, Boraris, Jarakís, Waiwais, Waraos venezuelanos, quilombolas, ribeirinhos e professores persistiram na ocupação, transformando corredores em trincheiras, dormindo no chão, em barracas, no calor e debaixo de chuva.
Os parentes, como são chamados os indígenas, gritavam “Surara!”, todos juntos em seu momento sagrado do dia. Surara é um termo que significa ordem e confirmação. Surara é certeza, guerreiro e guerreira. Surara é Resistência. E eles resistiram.
No dia 27 de janeiro, a ministra dos Povos Indígenas Sônia Guajajara chegou à ocupação de mãos dadas com Puyr Tembé, secretária estadual que cuida da interlocução com os povos indígenas.
Os governos estadual e federal propagandearam que estavam negociando com os indígenas – na verdade, queriam criar uma lei específica, ignorando a pauta central do movimento: a revogação da lei 10.820 e a exoneração de Rossieli Soares.
Guajajara foi embora dois dias depois, quando conseguiu mediar uma reunião entre o governo do estado e indígenas – que também terminou sem acordo.
A força e a persistência dos indígenas é sempre algo incrível de se observar. Teve um momento em que os Munduruku de Itaituba chegaram na Seduc para ajudar na ocupação, e vi a felicidade de Alessandra Korap.
Ela dava pulos de alegria, abraçava um por um, sorrindo. Se animou como se fosse uma criança e até foi pular na cama elástica. Como se a vencedora do prêmio Goldman Environmental Prize de 2023, o “Nobel” do ambientalismo, só quisesse ser feliz.
E então, depois de vários dias ali do lado dos manifestantes, comendo junto com eles e até dormindo uma noite na ocupação, eu vi o governo recuar.
Foi no dia 5 de fevereiro. Barbalho assinou um termo de compromisso para revogação da lei 10.820. Vi a praça explodir em gritos, lágrimas e abraços.
Choramos não só de alívio, mas por todos os professores feridos, pelos indígenas criminalizados, pelos estudantes que tiveram suas vidas empurradas para a margem e pela força originária e tradicional que derrotou o desmonte da educação paraense.
Depois de anos cobrindo como fotojornalista as violações contra os indígenas e outros povos oprimidos, e indo até seus territórios para presenciar sua luta e resistência, presenciei um momento histórico.
Mas o desmonte não terminou. E até lá a ocupação continua. Surara?