O papel da sociedade na preservação de bens históricos e culturais

Artigo do desembargador aposentado Vladimir Passos de Freitas (foto ao lado), publicado orginalmente no site Consultor Jurídico:

Os bens relacionados com o patrimônio histórico e cultural brasileiro continuam a sofrer perdas contínuas. Nesta semana, “Uma pessoa morreu e cinco ficaram feridas após parte do teto da Igreja e Convento de São Francisco de Assis, conhecida como ‘igreja de ouro’, desabar na tarde desta quarta-feira (5), no Centro Histórico de Salvador” [1]. Trata-se de igreja tombada pelo Iphan, órgão encarregado da proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, sendo a gestão da Ordem Primeira de São Francisco [2].

A este desabamento somam-se os muitos desastres que evidenciam o abandono de expressiva parcela de bens históricos e culturais no Brasil. Nossa realidade é a de falta de verbas dos órgãos encarregados de proteger o patrimônio histórico, artístico e cultural, descaso de proprietários desgostosos com a limitação no uso de seu bem, insuficiência de recursos por parte dos proprietários para fazer a manutenção e desinteresse da sociedade nos referidos bens.

Causas do abandono

Se várias são as causas, uma delas prepondera: desinteresse da sociedade nos referidos bens. O interesse está diretamente ligado à educação e o Brasil, neste particular, vai mal, segundo o ranking mundial da educação, cujos dados foram divulgados pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) no fim de 2023. Ocupando nosso país o primeiro lugar em escolas fechadas durante o ano, com o número de feriados sempre aumentando, a conclusão não surpreendeu: “Brasil tem baixo desempenho e estagna em ranking mundial da educação básica” [3].
Se grande número de pessoas não tem interesse na cultura, a consequência direta e lógica será o enfraquecimento da organização da sociedade e a fraca ou nenhuma pressão sobre aqueles que ocupam cargos em órgãos do patrimônio histórico, artístico e cultural e sobre os políticos que podem legislar a respeito. Portanto, a conclusão inafastável é a de que o primeiro e mais importante passo é a ação da sociedade civil.

Participação da sociedade civil

Uma pessoa interessada pode — e deve — participar de várias formas. A mais comum, aos que podem dispor, é contribuir com valores em dinheiro. Mas não é a única e nem a mais importante. A participação efetiva é a que mais importa. E isso pode dar-se atuando na direção de uma sociedade civil de proteção de determinado bem, na prestação de serviços voluntários e, no mínimo, prestigiar eventos.

O prestador de serviços voluntários é uma figura essencial. A Federação de Amigos de Museu do Brasil (Feambra) possui um guia para ensinar quem deseja ajudar nos museus brasileiros. A diretora da Feambra, Camila Leoni, explica: “Eles podem ajudar no atendimento ao público, na parte de pesquisas, publicações. São inúmeros os papeis de uma associação de amigos, vai muito da necessidade específica de cada museu” [4].

Exemplo: dia 12 de janeiro visitei o ótimo Museu Republicano de Itu (SP). Uma atenciosa estudante de Pedagogia, prestando serviço voluntário, acompanhou-me dando-me preciosas informações e assim tornando a visita muito mais agradável e produtiva. Nota dez.

O Museu da Favela, no Rio de Janeiro, tem interesse e dá informações precisas sobre o trabalho dos que se interessem em ser voluntariados [5]. O prestigiado Masp de São Paulo informa no seu site aos interessados em prestar serviços voluntários que “neste momento, todas as oportunidades de atuação estão preenchidas. Caso tenha interesse em participar dos processos seletivos para as próximas oportunidades…” [6]. O interesse e a inexistência de vagas estão ligados ao respeito e à confiança no referido museu, condições básicas para que alguém vá dedicar seu tempo a algo de interesse público.

Finalmente, as visitas. Quem não tem disponibilidade financeira para doar e nem tempo para ser voluntário, pode fazer o mínimo, ou seja, prestigiar participando. Nada desanimará mais um interessado do que ver sua iniciativa desprestigiada pela sociedade. Visitar exposições, museus, eventos musicais, deve ser um item na agenda de todos, dividindo o tempo ocupado pelos programas da TV, na maioria das vezes com depressivas notícias de criminalidade ou disputas de baixo nível.

A atividade cultural, a proteção dos bens tombados e atividades afins são, com frequência, objetos de legislação e de políticas públicas por parte de órgãos públicos. A colaboração financeira dada pelo Estado é importante, essencial mesmo, para que seja possível o sustento de entidades destinadas à preservação das diversas formas de cultura do Brasil.

Evidentemente, verbas passam por exigências administrativas rigorosas, por vezes excessivamente burocráticas, em razão do receio de que possam tornar-se fraudulentas.

Mas o Estado não age apenas através de financiamentos. Em Pernambuco, o governo estadual apresenta o programa Seja Monitor Voluntário [7]. No Paraná, a Fundação Cultural de Curitiba promove, através de artistas voluntários, “momentos de fruição artística e descontração para aqueles que estão afastados temporariamente do convívio social seja por motivo de saúde, abandono ou por imposição da justiça” [8].

Frequentemente o Estado é forçado a agir ou deixar de agir em razão de decisões judiciais. Ações civis públicas, regra geral propostas pelo Ministério Público, são uma via importante de preservação e imposição de medidas protetivas pelo Estado. No entanto, elas não devem ser a forma única, pois as soluções são demoradas, principalmente a execução de sentenças que julgam o pedido procedente.

Legislação

A proteção da cultura está expressa no artigo 215 da Constituição ao dispor que o “Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” [9]. O antigo Decreto-Lei 25 de 1937, até hoje em vigor, trata da proteção do patrimônio histórico e artístico nacional [10].

A Lei 9.605, de 1998, Lei dos Crimes Ambientais, prevê diversas crimes contra o Ordenamento Urbano e o Patrimônio Cultural (artigos 62 a 65). É de grande importância, muito embora suas penas sejam baixas [13].

O descumprimento aos textos citados e aos que os complementam pode ser objeto de provocação do Poder Judiciário através de ação civil pública, conforme a Lei 7.347, de 1985. Nelas as associações, mais conhecidas como ONGs por influência norte-americana, podem ser autoras (artigo 5, inciso V).

Registre-se, contudo, que tais organizações por vezes são vistas sob suspeita. Recentemente apurou-se que uma delas, dedicada a abusos supostamente realizados em presídios, agia a mando de uma facção criminosa [14]. Mas não é justo generalizar. Há as respeitáveis, que atuam há décadas, como a SOS Mata Atlântica. O importante é que sejam examinadas quanto ao seu tempo de duração e conquistas.

Conclusão

Como se vê, leis existem, o que nos falta mesmo é uma maior e mais efetiva participação da sociedade civil, em múltiplas formas, na proteção dos nossos bem históricos e culturais. Mãos à obra, sejamos mais atores do que espectadores.


[1] UOL. Beatriz Gomes. Teto da ‘igreja de ouro’ desaba em Salvador e mata turista de SP; vídeo… Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2025/02/05/igreja-do-ouro-salvador-ocorrencia-janeiro-2025.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 08 fev. 2024.

[3] CNN. Thais Magalhães, 05/12/2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/brasil-estaciona-em-ranking-de-avaliacao-internacional-de-educacao-basica/#goog_rewarded. Acesso em: 08 fev. 2024.

[4] FEBRAE. Disponível em: https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2014/05/guia-ensina-trabalhar-como-voluntario-em-museus-de-sp.html. Acesso em: 08 fev. 2024.

[5] MUF. Ações Educativas. Disponível em: https://muf.tantata.com/educacao/. Acesso em: 08 fev. 2024.

[6] Masp voluntários. Disponível em: https://masp.org.br/sobre/voluntarios. Acesso em: 08 fev. 2024.

[7] Espaço Ciência. Seja Monitor Voluntário. Disponível em: http://ec.pe.gov.br/?page_id=13827. Acesso em: 08 fev. 2024.

[8] Fundação Cultural de Curitiba. Disponível em: http://www.fundacaoculturaldecuritiba.com.br/rede-sol/apresentacao/. Acesso em: 08 fev. 2024.

[9] Constituição da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

[10] Decreto-Lei 25, de 1937. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0025.htm. Acesso em: 08 fev. 2024.

[11] Decreto nº 8.124, de 17 out. 2013. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/decreto/d8124.htm. Acesso em: 08 fev. 2024.

[12] Lei nº 11.906, 20 jan. 2009. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11906.htm. Acesso em: 08 fev. 2024.

[13] Lei 9.605, de 12 de fev. 1998. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm. Acesso em: 08 fev. 2024.

[14] O Estado de São Paulo, 20 jan. 2025, Operação Falso Grito, p. A10.

  • é presidente da ALJP (Academia de Letras Jurídicas do Paraná); professor de Direito Ambiental e Sustentabilidade; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador federal aposentado, ex-presidente do TRF-4. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e do Ibrajus ( Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário).

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