Dica de leitura e reflexão para este Carnaval, com texto de de Cristhiano Aguiar na newsletter Linguagem Guilhotina:
Algo tem habitado minha cabeça desde o final do ano passado: a edição 2024 da Pesquisa Retratos da Leitura. Os números são nada menos que devastadores. Vivemos, atualmente, uma sangria de leitores no Brasil. Segundo a pesquisa, tivemos, nos últimos quatro anos, uma redução de mais de 6 milhões de leitores em nosso país. Outro indicador que me entristece é o fato de que 53% da população brasileira não leu sequer parte de um livro nos três meses anteriores à pesquisa. Além disso, somente 16% das pessoas acima de 18 anos comprou, em nosso país, um livro no ano passado.
Em agosto de 1876, Machado de Assis escreve uma crônica sobre o tema do analfabetismo, demonstrando, no texto, seu incômodo com o fato de que 70% da população brasileira não sabia ler. Pensem comigo: aquele que foi o maior prosador latino-americano do século XIX, aquele que é um dos maiores escritores da língua portuguesa em todos os tempos, vivia em um país no qual apenas três de cada 10 pessoas tinham a competência linguística mínima para tentar ler suas crônicas, contos, romances, poemas. Há uma solidão inerente a qualquer carreira artística, mas esta solidão se intensifica quando determinadas carreiras nas artes, como a de escritor, se desenvolvem em um panorama social como o do Brasil do final do século XIX.
Quem me alertou pela primeira vez para estas questões foi o livro A formação da leitura no Brasil, escrito pelas minhas queridas Marisa Lajolo e Regina Zilberman. É neste mesmo livro que Lajolo e Zilberman chamam atenção para as queixas a respeito de um tema que continua atual: o preço do livro no Brasil. Em 1840, nos relatam as autoras, Santiago Nunes Ribeiro escreve uma crônica na qual já aborda este incômodo. Em 2025, no dia em que escrevo este texto para vocês, ouvi dos meus alunos da graduação em Letras do Mackenzie queixas a respeito do mesmo tema.
Depois de anos, estou de volta, na graduação, a uma disciplina de Teoria da Literatura. Geralmente, neste campo, eu dou para a graduação Teoria do Teatro e Teoria do Romance. Um dos livros que a turma lerá comigo será O Auto da compadecida, de Ariano Suassuna. Hoje, na aula, uma pessoa mostrou a edição d’O Auto dela e reclamou do preço. Os colegas, ao ouvirem o preço, concordaram que o valor do livro era alto. Um deles me disse: “ou a gente come feijão, ou a gente compra livro”.
Não entrei, com meus alunos, no mérito do preço do livro de Ariano. Eu acolhi a queixa deles e pontuei apenas que conheço livros que atualmente têm um preço ainda maior. Embora eu saiba que às vezes a questão do livro no Brasil está ligada ao fato de que muitos brasileiros e brasileiras estão dispostos a pagar X reais em um chocolate, mas não em um livro, eu não conheço a realidade socio-econômica destes alunos. Portanto, não cabe a mim, neste momento, na sala de aula, julgá-los nestes termos.
Assim como muitos autores e intelectuais, entre eles Machado de Assis, ficaram chocados com o alto índice de analfabetismo e os baixos índices de leitura de sua época, nós, escritores atuando no século XXI, também ficamos chocados com o que a Retratos da Leitura no Brasil tem revelado para nós a cada nova pesquisa divulgada.
Isso me lembra outros episódios, vividos por mim, e que acho ilustrativos de uma série de facetas. Em 2022, eu tive a honra de ir para um Instituto Federal do interior do estado de São Paulo, porque alunos do ensino médio e do curso de Letras da instituição estavam lendo dois contos meus em suas aulas. O encontro foi incrível e guardo com carinho tudo que rolou nele. Terminada a atividade, um dos alunos foi conversar comigo empolgado. Em determinado momento, ele me disse: “gostei viu professor do encontro, assim que puder vou xerocar seu livro Gótico Nordestino pra ler”. Não houve ironia, ou qualquer coisa assim, na fala dele. Ele disse a frase da maneira mais natural possível.
Muitos anos antes de 2022, eu dei aulas para um grupo de médicos e profissionais da saúde mental (muitos deles psicanalistas) sobre literatura. Me chamou atenção como a maioria deles, naquele clube de leitura, simplesmente não comprava livros. Pelo contrário, baixavam pdfs, sempre que possível, dos livros que seriam objeto das aulas, e se orgulhavam disso. No final do ano passado, eu estava em um Shopping de São Paulo com um casal muito amigo meu, ambos da área do Direito. Nós três encontramos um advogado amigo deles dentro de uma loja de decoração. Após meu amigo me apresentar como professor e escritor, o advogado tomou uma atitude que, por algum motivo, é recorrente quando eu interajo com profissionais da área jurídica. Ele, o advogado, fez um longo monólogo sobre como a vida de um professor é miserável e sofrida (em nenhum momento ele perguntou minha opinião). Findo o monólogo, ele arrematou: “ah, eu tenho um sobrinho que escreve umas coisas”. Por fim, volta e meia sou abordado por pessoas que querem que eu leia as suas obras literárias e as avalie. Quando eu digo, e tento fazer isso da maneira mais educada possível, que isso é um trabalho como outro qualquer e por isso eu devo ser pago para realizá-lo, muitas delas se ofendem ou ficam chocadas comigo.
Todos estes exemplos acima me revelam, por um lado, a dificuldade de acesso ao livro que milhares de brasileiras e brasileiros enfrentam, devido a condicionantes sociais. E, por outro, revelam também, em parte por causa das nossas desigualdades sociais, como o livro e a literatura fazem parte de um imaginário social que coloca ambos em uma posição de constante desprestígio.
16% e a nossa carreira como escritoras e escritores
Qual o impacto de tudo isso para esta profissão que abracei, a de ser escritor?
Mal tenho como responder a vocês sobre isso, mas quero compartilhar breves inquietações. Eu não tenho mais feito textos tão longos por aqui, portanto vou condensar minhas ideias e, se você quiser desdobrá-las, é só escrever nos comentários. O primeiro desafio é o da profissionalização. Volto ao livro de Lajolo e Zilberman. Ao longo do livro, elas pontuam como, do século XIX em diante, nós escritores editamos e vendemos livros por conta própria, renunciamos a direitos autorais (afinal, as editoras já estão fazendo um grande favor ao publicar nosso trabalho, não é mesmo?), ou aceitamos pagamentos simbólicos pelo trabalho que exercemos para editoras, veículos de comunicação e, hoje em dia, para influenciadores. Sempre fomos o elo mais frágil da corrente, porque o baixo valor econômico e social agregado ao nosso trabalho tende a diminuir, de maneira considerável, nosso poder de barganha na hora de negociarmos nosso trabalho com os contratantes/clientes. Para muitos de nós, é difícil equilibrar a carreira de escritor com outras carreiras, aquelas que nos ajudam a pagar os boletos, porque as baixas vendas de livros, os baixos valores pagos pelo nosso trabalho, a ausência de políticas públicas sólidas de promoção à literatura, o errático “giro” de eventos com cachês, enfim, tudo isso pode impedir um foco e regularidade na escrita literária, infelizmente.
A precarização do trabalho com a escrita é uma marca constante do nosso ofício e pode vir a piorar bastante com o advento da Inteligência Artificial. Um país no qual apenas 16% da população adulta comprou um livro no último ano é, portanto, um país em que condições mínimas de trabalho com a literatura se tornam difíceis de amadurecer. Somos um país forjado desde o século XIX para ser o Brasil dos advogados, dos engenheiros, dos médicos e do comércio. Estas quatro profissões são fundamentais, não me entendam mal. No entanto, é como se no Brasil, até hoje, pouco mais coubesse além disso para a construção de uma nação. O que sobra é tratado como o “resto”. Logo, há uma dificuldade para que nós, escritores e escritoras, consolidemos a posição social da nossa profissão. Outra vez, esclareço: não se trata de ganhar status. Isso não é importante. Consolidar uma profissão, seja de maneira formal, ou no imaginário coletivo de uma nação, significa que serão estabelecidas condições mínimas para o exercício respeitoso deste ofício.
Se nosso mercado é pequeno, e se nem sempre os espaços estão abertos, isso cobra um preço. Ficamos ressentidos, enciumados, competitivos. Achamos que é preciso fazer gambiarras para alcançar o espaço. Passamos a escrever não para leitores, e sim para aquele professor, ou para aquele jornalista ou para aquele curador, ou para aquela pauta da moda, acreditando que a literatura é feita de uma conversa entre pessoas “especiais”. Somos chamados a participar de atividades acadêmicas no exterior (o que é já um baita reconhecimento), mas inventamos que estamos “em turnê no exterior”. Olhamos para outros países com inveja e admiração e portanto nos imaginamos escritores de Manhattan, Buenos Aires ou Paris, nos imaginamos vivendo desterrados num país do qual passamos a nos envergonhar. Isso nos leva a muitas vezes acreditar que a ementa do nosso curso acadêmico, ou o nosso romance, ou o nosso poema, por exemplo, têm como missão salvar o país de sua suposta miséria. Atribuimos, como mecanismo compensatório da culpa e da frustração, à literatura um papel que não lhe cabe.
Diante disso, há saída?
Um contraponto
Nos parágrafos anteriores, pintei um retrato com tons de pessimismo, finalizando com uma quase caricatura da minha profissão… No entanto, não precisamos morar no pessimismo. Primeiro, existe sim no Brasil um mercado editorial bastante interessante e viável. Ele é perfeito? Não, mas é possível encontrar espaço e trabalho nele. Segundo, existe sim no Brasil um sistema literário e educacional sólido, apesar de nossas dificuldades estruturais. Precisamos melhorar de forma urgente, mas não somos um fracasso. Nossa cultura não está em decadência. O conhecimento produzido por nós brasileiros não é uma farsa. Nossa literatura contemporânea é variada e tem feito jus ao desafio do seu próprio tempo. Não vamos, de modo algum, cair nesse ódio nacionalista que virou moda após todos esses ex-alunos de Olavo de Carvalho e dos brasis paralelos ocuparem espaços em diferentes lugares, espaços ocupados muitas vezes em nome de um subdesenvolvido sentimento anti-esquerda.
Muitas pessoas gostariam de ter acesso a um livro, e não têm condições para isso. Muitas pessoas gostariam de ler mais, porém a vida cotidiana esmaga tanto as suas mentes e seus corpos, que mal possuem foco para ver um vídeo enviado por um amigo no grupo do zap. Se alguém não consegue, não pode, ou não quer ler, nem comprar um livro, essa pessoa não deve ser vilanizada. Ao mesmo tempo, a literatura pode muito, mas não tudo. A mudança social acontece dentro da prática saudável da política, entendida aqui no meu texto nas mais amplas acepções possíveis. A literatura faz parte da política, sem dúvidas, porém precisa, ao mesmo tempo, preservar sua autonomia em relação a ela.
Quero voltar a Machado de Assis. Todas as condições sociais eram adversas para a sua carreira. Quais foram as marcas profundas deixadas pelo racismo, por exemplo, em sua vida? Até hoje, não sabemos com toda certeza. Este homem pobre, negro, com pouca instrução formal, se tornou o maior de todos os escritores brasileiros. Meritocracia? Há mérito individual, sem dúvidas, mas também, penso, sorte. Machado vivia em tal condição de vulnerabilidade social, durante sua infância e juventude, que qualquer desvio de rota teria, não duvido, inviabilizado sua carreira. Quantos Machados de Assis o Brasil perdeu ao longo do século XX? Quantos, ao longo do século XXI? Quantas carreiras literárias foram interrompidas não pela ausência de talento, mas sim porque o país desperdiça e, às vezes despreza, os seus talentos, em especial se estes talentos nascem nas camadas menos favorecidas socialmente? Essa questão me atormenta há anos. E se tornou ainda mais urgente após eu iniciar a minha carreira, a de professor universitário, que em 2025 completou uma década.
Ainda com Machado, podemos pensar outra coisa: ele buscou construir a sua obra. No Brasil dos 70% de analfabetos, ele continuou a escrever. O Brasil de hoje é injusto, porém menos injusto do que o Brasil do passado. Não somos escritores de NYC ou de Paris. Somos escritores brasileiros. Penso que devemos continuar e perseverar e lutar por condições melhores de trabalho. Merecemos escrever. Nosso país merece ler. Nossa missão, acima de tudo, é uma só: o desafio da literatura.
Outras perspectivas: Rodrigo Casarin, Henrique Rodrigues, Carolina Vigna e Nara Gonçalves
Ainda sobre a pesquisa, quero deixar vocês com alguns links que expandem o debate. Vale a pena conferir a série de reflexões sobre a pesquisa que o jornalista e escritor Rodrigo Casarin fez em seu blog Página Cinco no UOL. Também quero indicar o debate feito pelo escritor Henrique Rodrigues no jornal Le Monde, no qual o autor enfatiza o papel da educação e da escola no enfrentamento da questão da leitura no nosso país. A escritora e professora do curso de Publicidade e Propaganda do Mackenzie, Carolina Vigna, reflete sobre o tema no seu Substack pelo viés do impacto das mídias sociais. Saindo da conversa específica sobre a pesquisa Retratos da leitura no Brasil, penso que é muito salutar ler o ensaio pessoal de Nara Gonçalves. Em seu texto, Gonçalves fala, a partir de sua vivência, das barreiras de classe social que ela enfrentou e ainda enfrenta.