Artigo: “O direito fundamental ao patrimônio cultural como cláusula pétrea”

Por Marcos Paulo de Souza Miranda (foto), promotor de Justiça e professor de Direito do Patrimônio Cultural, em texto publicado no site Consultor Jurídico:

Ao longo dos tempos, nos textos constitucionais dos mais diversos países, foram sendo assentados direitos que, por sua relevância e reivindicação, eram considerados essenciais aos integrantes de determinado grupo social, devendo, portanto, constar da lei maior de cada nação.

Em um primeiro momento foram assegurados aqueles voltados à proteção da esfera individual da pessoa humana contra ingerências do poder público, tais como os direitos à vida, à propriedade e à liberdade.

Na fase da segunda geração foram impostas obrigações de índole positiva aos poderes públicos, em contraposição ao abstencionismo estatal, objetivando incrementar a qualidade de vida dos integrantes da sociedade, podendo ser citados, entre eles, os direitos à educação, à saúde e à moradia.

Por fim, em uma terceira geração foram enumerados direitos que possuem como titulares não mais o indivíduo ou a coletividade, mas o próprio gênero humano, entre os quais estão o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o direito dos povos ao desenvolvimento e o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade [1].
Não há dúvida quanto à inclusão, nessa terceira geração, do direito ao patrimônio cultural hígido, de natureza difusa, de titulares sem rosto integrantes das presentes e futuras gerações.

Feitas tais breves considerações, pergunta-se: nossa Constituição da República agasalharia o direito ao patrimônio cultural como um direito fundamental?

Primeiramente, releva anotar que a locução direitos fundamentais é reservada aos direitos relacionados a posições básicas das pessoas, inscritos em diplomas que vigem em uma ordem jurídica determinada, limitada no espaço e no tempo, caracterizados, de forma geral, como concretizações das exigências  basilares relacionadas ao princípio da dignidade humana [2].

Corolário da dignidade humana e da cidadania

Max Dvorák nos ensina que o patrimônio cultural está entre um dos mais importantes bens ideais responsáveis por provocar na coletividade um sentimento que está acima das preocupações e esforços materialistas do cotidiano. Sobre os bens culturais, Dvorák afirma que eles podem dizer respeito ao valor artístico dos monumentos à sua presença na paisagem, à sua relação com um aspecto local, às recordações que eles estão ligados ou aos resquícios de antiguidade que os enobrecem e, ao mesmo tempo, despertam no espectador imagens do futuro e do passado. O grande mérito da satisfação que nos proporcionam hoje as obras de arte antiga reside no fato de que esse prazer não se limita a um determinado grupo de monumentos e nem é privilégio de certas classes sociais [3].

Nesse cenário, evidente que a fruição de um patrimônio cultural hígido é corolário da própria dignidade da pessoa humana e da cidadania (fundamentos da República Federativa do Brasil) e constitui direito fundamental de terceira geração, sendo inconteste que a tutela desse direito satisfaz a humanidade como um todo (direito difuso), na medida em que preserva a sua memória, a sua identidade e seus valores, assegurando a sua transmissão às gerações futuras.

Outro ponto característico dos direitos fundamentais está relacionado ao fato de estarem positivados em preceitos da ordem jurídica, circunstância que os diferem dos denominados direitos humanos, que podem exsurgir de postulados jusnaturalistas, de ordem apenas filosófica [4].

Verifica-se que o sistema constitucional vigente em nosso país optou, em seu artigo 5º, § 2º, por um rol aberto de direitos fundamentais, que não se limitam àqueles enumerados, de forma expressa, no Título II, podendo estar presentes em outros dispositivos da Constituição da República ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

Analisando nosso ordenamento constitucional de forma sistêmica, constata-se que o artigo 5º, LXXIII, da CF/88 consagrou a ação popular como instrumento de defesa da moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio histórico e cultural.

Assim, considerando que os remédios constitucionais são garantias instrumentais destinadas à proteção dos direitos fundamentais, que visam reparar danos ou afastar impedimentos ao seu exercício, o argumento lógico-conceitual impõe o reconhecimento do direito ao patrimônio cultural como um direito fundamental.

Não bastasse, o artigo 225 da CF/88, ao dispor que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo ele essencial à sadia qualidade de vida das presentes e futuras gerações, elevou o direito ao meio ambiente à categoria de direito fundamental. Como os bens culturais integram o conceito holístico de meio ambiente, que também açambarca a dimensão cultural, podemos concluir que o direito ao patrimônio cultural desfruta da mesma natureza jurídica.

Lições dos especialistas e a posição do STJ

Em harmonia com essa linha de intelecção,  Ingo Wolfang Sarlet cita como exemplos de direitos fundamentais deslocados do rol do Título II da Constituição Federal Brasileira o direito à proteção do meio ambiente (artigo 225) e a garantia do exercício dos direitos culturais (artigo 215) [5].

No mesmo sentido,  o doutrinador Paulo Gonet Branco leciona que os direitos fundamentais de terceira geração particularizam-se pela titularidade difusa ou coletiva, pois voltam-se para a proteção não do homem isoladamente, e entre eles estão o direito à paz, ao desenvolvimento, à qualidade do meio ambiente e à conservação do patrimônio histórico-cultural [6].

Dando concretude a tais entendimentos, o Supremo Tribunal Federal acolhe expressamente a natureza fundamental do direito ao patrimônio cultural, já tendo consignado que: “a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 representou um marco evolutivo em termos de reconhecimento e proteção jurídica do patrimônio cultural brasileiro. Reconheceu-se, a nível constitucional expresso, a necessidade de tutelar e salvaguardar o patrimônio histórico-cultural, enquanto direito fundamental de terceira geração, isto é, de titularidade difusa, não individualizado, mas pertencente a uma coletividade” [7].

A fundamentalidade do direito ao patrimônio cultural em nossa ordem jurídica implica repercussões de relevo em prol da sua efetivação, como a aplicabilidade imediata das normas constitucionais a ele relacionadas (artigo 5º, § 1º da CR); a sua inalienabilidade/indisponibilidade, bem como dos bens que o integram, e a vinculação dos poderes públicos à sua observância, garantia e implementação.

***

[1] CORREIA, Belize Câmara. A tutela judicial do meio ambiente cultural, Revista dos Tribunais. v.34, abr-jun 2004. p. 46.

[2] MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva. 4. Ed. 2009.  p. 271, 279.

[3]  DVORÁK, Max. Catecismo da preservação de monumentos. p. 86-87

[4] MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva. 4. Ed. 2009. P. 278.

[5] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 3. ed. 2003. p. 129.

[6] MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva. 4. Ed. 2009. p. 268.

[7] STF; RE-AgR 1.222.920; SC; 2ª Turma; Rel. Min. Ricardo Lewandowski; Julg. 20/03/2020; DJE 31/03/2020; Pág. 97.

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