Por Tuty Osório, jornalista e escritora:
Já contei do bar em casa da Consuelo. Repito a contação para ambientar o ambiente. Eis que, um belo dia desses, a amiga Consuelo cansou de ficar procurando os cúmplices históricos pelos lugares da cidade e arrumou um bar em casa. Adaptou um antigo deck junto ao pomar que já tinha um banheiro pedindo pra ser reformado, comprou freezer, geladeira, fogão e micro ondas a prestação e passou semanas a bolar o nome ideal. Decidiu-se por Casa de Enock, sabe-se lá por qual motivo. Criou um grupo no whatsapp para
convocar a galera e poucos encontros depois virou point.
– Mulher, vai te prender essa marmota! O povo vai te cobrar de você estar em casa! – insistiam uns.
– Conchita, você vai ficar de saco cheio logo, amigo íntimo é bom longe! – pregavam outros.
Ela nem ligou. Quem vai à Casa, e se comporta bem, ganha de prêmio a chave do portão independente de acesso. Se o comportamento piorar, a chave é confiscada. O que não aconteceu, sublinhe-se. Não era só a Consuelo que estava à caça de um canto de camaradagem sem grandes planos, com antecedência. A adesão e a colaboração foram rápidas e eficientes.
Repetido isto, vamos à crônica. Na segunda vez peguei um clima mais emocional que da primeira. O papo era sobre maternidade, motivada pela capa da revista Cult, cultuada por essa turma de nostálgicos de todas as épocas. Um dossiê debateu o tema e, pra variar, quer dizer, não variando nada, meus amigos e amigas não entram em acordo. Fico pensando se não se entendem pelo prazer de discordar, ou se de fato têm pensamentos divergentes. Não fujo ao debate. Só que há momentos que discordar, por discordar, chega-me cansativo e sem graça.
É citada a versão contemporânea que impõe à mulher trabalho insano, sobrecarga, total e solitária responsabilidade pelos filhos. Há também a descrita maternidade reduzida ao cuidar. Uma coisa meio confusa, por mais legítima que seja. A maternidade coletiva. Masculina. De outros e outras que não são a mãe biológica. A briga fica tão feia que até quem não tem filhos se atraca de especialista, ou pior – de oprimido pela tradição. Pergunto como pode, já que não têm filhos? Taxam-me de preconceituosa e como ainda não é
hora pra motivação de tanto destempero ser etílica, fico realmente preocupada com a paixão despertada pelo tema.
Considerando com generosidade e abertura, posso ver que se há tanta celeuma em torno de um assunto que parecia dado, é ótimo sinal. Confesso que não tive esse espanto descrito por algumas mulheres deste século, diante dos filhos acabados de sair do seu corpo, olhados como estranhos aos quais teriam que ser apresentadas. Já falei nisto, aqui. Minhas filhas são as criaturas mais íntimas com as quais convivo, desde sempre. Não é pieguice nem padecimento no paraíso. É assim. Somos tão próximas que cabe crítica, irritação, chateação. Sou daquelas que gostam de ser amigas das filhas. É preciso coragem e segurança, porém, prefiro assim. Não creio em autoridade, nunca acreditei.
Theodora sacode o meu braço, impaciente, reclamando que até agora não abri a boca.
– Logo você, que é a mãe maior, ironiza.
Fico mal com a indelicadeza e recordo que amigo é pra se perdoar, inclusive. Não sou a única a ter alegria na maternidade. E, sem medo de ser feliz, desejo a todos os tipos de mãe que a vivam com alegria semelhante. Não me importa se é coletivo, masculino, de si ou do outro. Ser mãe, obviamente algo que vai além da concepção e do parto, é bom. Se quiser complicar, também pode. Para mim é, aliás, bem complexo. Não há palavra, nem lágrima, que defina o meu amor sem fim, incondicional, pois.
Atenção. Sem fim não significa sem cobrança. Gente que sou, também tenho a perfeita imperfeição a me integrar. Venham de lá que estou aqui cheia de argumentos, fortalezas, vulnerabilidades.
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Tuty Osório é jornalista, especialista em pesquisa qualitativa e escritora.
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