Por Tuty Osório, jornalista e escritora:
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de Fernando Pessoa, era obcecado por eles. Fartava-se de repetir que estava farto deles, parecendo que o rodeava, em profusão, a perfeita humanidade. Lendas literárias dão conta de um Álvaro de Campos que flertava com o fascismo. Autodenomina-se engenheiro naval e poeta futurista. O futurismo, este , sim, íntimo da infâmia. Talvez sejam calúnias, as que acusam Álvaro, o modernista fazedor de versos em rimas nada convencionais, a poesia flertando com a prosa. Afinal Pessoa cantou épicos ao império colonial português – repletos de rebeldes ironias, veladas e diretas condenações.
Na TABACARIA, de 1928, poema em prosa, (estamos no fim de semana da poesia, desculpem aí, desta vez o avesso de Paulo Mendes Campos, da crônica de ontem, que nos ofereceu prosa poética), traz-nos existencialismo meio que pessimista: “Não sou nada. Nunca serei nada. À parte disso tenho em mim todos os sonhos do mundo.” Joga-se no chão e logo se levanta, em esperança. Prossegue mais adiante em quedas e voos, em contradição, em precisa expressão do que somos, ou não somos:
“(…) Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? (…)
Diferente da fuga para remédios e doenças que surgem com a moda da estação, precisamos assumir com maturidade o sofrimento social que vivemos. O da extrema pobreza, comum no Brasil e já banalizado como se tivesse deixado de existir; o das guerras contemporâneas que aterroriza e extermina, também, pela fome, numa crueldade voluntária à qual assistimos pela TV, pelas lentes de fotógrafos geniais e conseguimos seguir os dias a despeito dessa abominação.
É imensa a lista. Violência sexual, doméstica, simbólica. A discriminação que se perpetua e marca a pessoa para a vida inteira. Ao contrário do que se tentou acreditar por décadas, o sofrimento não é superável. Qualquer sofrimento. Dura para sempre. Podemos evitar o sofrimento. Expulsando a superficialidade de nossas vidas e enfrentando o peso da indignação. Passear é muito bom. Só que parece que há cadáveres demais para pular, desviar, enfim, ignorar durante o passeio.
Há que enxergar, mudar de atitude e aí, sim, poder percorrer alamedas de flores verdadeiras .
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Tuty Osório é jornalista, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. São de sua lavra QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos de 2022);
SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu
Coelho de 2023) e MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA, dez
crônicas, um conto e um ponto (crônicas e contos, também de 2023).
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