Por Fernando Horta, historiador – texto originalmente publicado no site Brasil 247:
Foram apenas quatro segundos. Quatro segundos que Eduardo Cunha, então presidente da Câmara dos Deputados, levou para proferir essa frase ao votar pela admissibilidade do impeachment de Dilma Rousseff em 17 de abril de 2016. Quatro segundos que ressoam até hoje com força profética, como se carregassem em si todo o peso do inferno que seria desencadeado sobre a democracia brasileira.
A ironia trágica daquele momento histórico não poderia ser mais cruel. Ali estava um político sob investigação na Operação Lava Jato — acusado de receber US$ 5 milhões de propina em contratos da Petrobras — implorando a misericórdia divina enquanto conduzia um processo que configurava um golpe parlamentar. Um homem que aceitara o pedido de impeachment no exato dia em que petistas anunciaram voto contrário a ele no Conselho de Ética, movido por vingança pessoal, pedia a Deus que tivesse piedade da nação que ele próprio ajudava a despedaçar.
Eduardo Cunha sabia o que estava fazendo. A frase não era apenas retórica vazia — era o reconhecimento cínico de que estava abrindo as comportas de uma crise institucional sem precedentes na Nova República. Era a consciência de quem libera forças que não poderá controlar, de quem abre a caixa de Pandora e espera apenas que alguma entidade superior consiga conter o caos subsequente.
E o caos veio. O impeachment de 2016 não foi o fim de um ciclo, mas o começo de uma espiral descendente que nos trouxe até aqui: a eleição de Bolsonaro em 2018, os ataques golpistas de 8 de janeiro de 2023, e agora, em 2025, uma crise de desestabilização orquestrada precisamente contra os três pilares que ainda sustentam a ordem institucional brasileira. A misericórdia que Cunha implorou não veio — ou, se veio, não foi suficiente para impedir que suas próprias ações desencadeassem anos de turbulência democrática.
Os três pilares da estabilização
Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal, emerge como guardião da interpretação constitucional e das punições contra tentativas golpistas. Sua atuação, especialmente após os atos de 8 de janeiro de 2023 e nas investigações sobre a trama para impedir a posse do presidente eleito, tem sido implacável na defesa da democracia. Moraes não apenas conduziu o julgamento que condenou 29 pessoas pela tentativa de golpe — incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro a 27 anos de prisão —, mas também se posicionou frontalmente contra tentativas do Congresso de atenuar essas penas através do chamado “PL da Dosimetria”. Sua declaração de que “admitir redução de penas é flertar com novas tentativas de golpe” sintetiza sua postura institucional: a democracia brasileira não será refém da impunidade.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com seus mais de 60 milhões de votos — a maior votação da história do Brasil —, funciona como “interlocutor válido” entre as elites e a sociedade brasileira. Sua legitimidade popular não é apenas numérica, mas simbólica: representa a possibilidade de um projeto político de redução das desigualdades que, precisamente por isso, incomoda setores privilegiados. Lula governa em condições adversas, mas sua força eleitoral impõe limites aos que gostariam de interromper novamente o ciclo democrático brasileiro.
Davi Alcolumbre, presidente do Senado, representa o terceiro pilar desta estabilização. Eleito com 73 votos entre 81 senadores, Alcolumbre tem demonstrado capacidade de segurar tanto as “sandices e absurdos” emanados da Câmara dos Deputados quanto os impulsos mais radicais de alguns senadores. Sua recusa categórica em pautar pedidos de impeachment contra ministros do STF, mesmo sob pressão intensa da oposição que chegou a ocupar o plenário do Senado, e sua defesa da autonomia legislativa sem ceder à chantagem institucional mostram seu papel estratégico na manutenção do equilíbrio entre os poderes.
Os escândalos como armas de desestabilização
Os escândalos do INSS e do Banco Master não são meros episódios isolados de corrupção — são tentativas deliberadas de envolver e deslegitimar os três pilares institucionais que sustentam a democracia brasileira. E o timing não poderia ser mais suspeito: estamos em período pré-eleitoral, quando a instabilidade institucional pode render dividendos políticos aos agentes do caos.
O caso do INSS revelou um esquema de fraudes bilionárias — com estimativas que chegam a R$ 6 bilhões — em descontos fraudulentos de benefícios previdenciários. A Operação Sem Desconto, deflagrada em abril de 2025, resultou na demissão do então presidente do INSS e na abertura de centenas de inquéritos. A tentativa da oposição de criar uma CPI para investigar o escândalo visa menos apurar os crimes do que criar um circo político que atinja o governo Lula, transformando problemas administrativos herdados e combatidos em arma de desestabilização política.
O Banco Master representa escândalo ainda mais complexo e revelador. Daniel Vorcaro construiu um império fraudulento baseado em carteiras de crédito fictícias, emissões bilionárias de CDBs com retornos absurdos e uma rede de proteção política que atravessa todo o espectro partidário, alcançando representantes dos três poderes. O rombo estimado de R$ 12 bilhões a R$ 40 bilhões será bancado pelo Fundo Garantidor de Crédito, ou seja, por toda a sociedade. Mais grave: Vorcaro pagou R$ 500 milhões anuais em honorários a escritórios de advocacia, incluindo parentes de ministros do STF, e comprou uma mansão de R$ 36 milhões em Brasília que servia para “encantar” autoridades.
A estratégia é transparente: vincular Alexandre de Moraes ao escândalo através da contratação do escritório de sua esposa, Viviane Barci de Moraes, pelo Master; atingir o governo Lula através de supostas conexões do PT baiano com o banco; e usar as investigações para pressionar Alcolumbre a pautar medidas desestabilizadoras no Senado. O ministro Dias Toffoli, relator das investigações, decretou sigilo total do inquérito e concentrou todas as apurações em seu gabinete, enquanto a CPI do INSS teve negado o acesso aos dados de quebra de sigilos — um claro sinal de que há mais interesses em jogo do que a simples busca pela verdade.
Os agentes da desestabilização
Quem participa ativamente desta orquestração de caos? Certamente os agentes políticos deslocados pelos projetos de combate à desigualdade de Lula, que veem no fracasso do governo petista a única chance de retornar ao poder. A extrema direita, liderada pelo bolsonarismo, busca desesperadamente a anistia para poder tentar novamente o golpe em 2026 — daí o “PL da Dosimetria” aprovado às pressas pela Câmara. Os setores radicais do Legislativo tentam usar o Congresso como lança contra os outros poderes, aproveitando-se da polarização para enfraquecer tanto o Judiciário quanto o Executivo enquanto aumentam seu controle sobre o orçamento brasileiro via “emendas PIX”.
Mas os agentes da desestabilização não são apenas políticos. As elites econômicas, que exigem a manutenção escorchante de juros reais de 10%, sabem que a instabilidade política é sua melhor aliada para impedir qualquer projeto de desenvolvimento que redistribua renda. O Banco Central, sob comando de Roberto Campos Neto durante o período em que o Master cresceu desenfreadamente, ignorou mais de 30 alertas do Fundo Garantidor de Crédito — uma omissão que beira a cumplicidade institucional. Gabriel Galípolo é acusado de também ter protegido, enquanto pode, o Banco Master.
E há ainda a miríade de sujeitos menores — como o próprio Daniel Vorcaro — interessados em manter esquemas de ganhos ilegais ou antiéticos. Estes personagens se alimentam da confusão institucional, prosperam no cinza das normas mal fiscalizadas e nos vazios de controle que a crise proporciona. A prisão cinematográfica de Vorcaro não deve ofuscar o fato de que dezenas de outros seguem operando em esquemas similares, protegidos pela névoa da desestabilização.
O preço da instabilidade
E qual é o preço desta desestabilização? Para as elites financeiras, é a manutenção de juros estratosféricos que sufocam qualquer possibilidade de desenvolvimento industrial ou de investimento produtivo — mas que garantem ganhos financeiros fáceis e sem risco. É a perpetuação de um modelo econômico que privilegia rentistas em detrimento dos trabalhadores, que transfere renda dos pobres para os ricos através do endividamento público.
Para a extrema direita, o preço é a anistia dos golpistas — condição sine qua non para que possam tentar novamente, em 2026, interromper o ciclo democrático brasileiro. O “PL da Dosimetria”, se aprovado pelo Senado, sinalizaria que golpes compensam, que ataques à democracia podem ser perdoados, que a violência política tem preço e esse preço é negociável. É, em essência, a normalização da ruptura institucional como método político legítimo.
Para os agentes menores — os Vorcaros do Brasil —, o preço é a continuidade de seus esquemas fraudulentos. É poder continuar operando bancos-pirâmide, desviando recursos de aposentados, construindo fortunas sobre a miséria alheia. É a certeza de que, na confusão geral, seus crimes individuais passarão como ruído de fundo, ofuscados pela magnitude da crise.
O vaticínio se cumpre
A frase “Que Deus tenha misericórdia dessa nação” foi proferida quase como profecia por quem sabia que abria as portas do inferno para todos os males que assomariam o Brasil nos anos seguintes. Aquele parlamentar, naquele momento histórico, teve a lucidez trágica de reconhecer que sua decisão teria consequências catastróficas para a ordem institucional brasileira.
E aqui estamos: os três pilares que sustentam nossa frágil democracia — Moraes na defesa constitucional, Lula na legitimidade popular, Alcolumbre na articulação legislativa — são atacados simultaneamente através de escândalos orquestrados e amplificados. A tentativa é clara: criar um ambiente de caos institucional que impossibilite a governabilidade, que inviabilize qualquer projeto de país que não seja o da perpetuação dos privilégios das elites.
O Brasil de 2025 repete, em versão atualizada, os mesmos dilemas que levaram àquela exclamação desesperada de “misericórdia”. A diferença é que agora sabemos, com a clareza que só a experiência histórica proporciona, que a piedade divina é insuficiente quando os homens escolhem ativamente o caminho da destruição institucional.
O fascismo vive no Brasil, nas preces de falsos religiosos e nas ações de falsos democratas.
A questão que se coloca não é apenas se Deus terá piedade deste país — mas se nós, brasileiros, teremos a lucidez e a coragem de defender os pilares democráticos antes que seja tarde demais. Porque quando esses pilares caírem, não haverá piedade divina ou humana que nos salve do inferno que haveremos nós mesmos construído.


Fique por dentro do mundo financeiro das notícias que rolam no Ceará, Nordeste e Brasil.