Por Tuty Osório, escritora e jornalista:
Coisa estranha é encontrar com a gente, distante de casa. Olhar para o olhar que os outros espiam sobre nós. Assim foi ao entrar atrasada no início do espetáculo sobre Canudos, no Sesc Belenzinho, zona leste de São Paulo. O atraso foi pela ida ao banheiro, após o percurso por ruas e metrôs. Meus anfitriões paulistanos de olho em mim, virada Chico Bento do Maurício de Souza, perdida e deslumbrada na cidade grande, no vagão lotado. Se São Paulo é como o mundo todo, no dizer de Caetano, o metrô é a São Paulo toda, maravilhosas histórias em movimento, sexta à noite, uma festa para o meu incontrolável voyeurismo da existência.
Pois então. Sorrateira e encabulada, alcancei a cadeira separada para mim e vi, fascinada, os artistas cantando sob uma luz forte, amarelona, quase vermelha, bambus empunhados tal qual cajados, roupinhas parecendo saídas da feira de Caruaru, pés descalços. Era a história do Conselheiro e do Arraial devastado pela República recém empossada. Entre frases consagradas, umas ditas em tom de sátira, outras pretendendo-se descritivas de um sertão que, sei muito eu, por observação e errância, é indescritível de tão ensimesmado, misturadas as criaturas às pedras, às areias, aos espinhos das plantas. Era mais uma versão de uma São Paulo que é diversa a cada vez que lá vou. Pois não é, que é, o mundo todo, mesmo…
Avança o tempo, duas horas e meia de sons de tiros, imagens de sangue, barulhos de jumenta, gritos do Beato e dos seus seguidores, ameaças de soldados, quermesses, romarias, trabalho, danças, dias. Cada qual pega de seu ofício e avança pra arrumar esse possível, em união, junto, abraçado. Já não estava mais sentada, tinha me transportado para aquela vila mítica, mística e mais real que a desvairada metrópole circundante do palco. Não é novidade pra mim a saga do Belomonte, a experiência comunitária, o massacre, a religiosidade popular ameaçadora da oficialidade.
O que me pega, espanta, transforma, é a trupe que com o corpo, meia dúzia de objetos, instrumentos musicais, panos e uma carrada de bambus, conta mais que num filme superproduzido, superlativado de efeitos especiais. A conversa é triste, a prosa pesada, a indignação inevitável. Só que aqueles seres que se movem pelo chão com molejo de mamulengos viventes, fazem ter esperança, alegria, força, fé. Fazem ter vontade de viver.
E VAMOS AO TEATRO!
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RESTINGA DE CANUDOS
Companhia do Tijolo
Criação e Dramaturgia: Dinho Lima Flor e Rodrigo Mercadante
Direção geral: Dinho Lima Flor
Elenco: Dinho Lima Flor, Rodrigo Mercadante, Karen Menatti, Odília Nunes, Artur Matar, Jaque da Silva, Danilo Nonato, João Bertolai, Marcos Coin, Dicinho Areias, Jonathan Silva, Juh Vieira, Vanessa Petroncari
Composições Originais: Jonathan Silva Desenhos: Artur Matar
Sesc Belenzinho, sextas e sábados (20 horas) e domingos (17 horas) – até 27 de abril.
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Tuty Osório é jornalista, especialista em pesquisa qualitativa e escritora.
São de sua lavra QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos de 2022); SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho de 2023) e MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA, dez crônicas, um conto e um ponto (crônicas e contos, também de 2023).
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SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA
QUANDO FEVEREIRO CHEGOU
MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA
Em dezembro de 2024 lançou AS CRÔNICAS DA TUTY em edição impressa, com publicadas, inéditas, textos críticos e haicais.