Texto da jornalista Tuty Osório:
O amigo parou de fumar por recomendação médica. A amiga, esposa do amigo, parou de fumar em solidariedade a ele. Eu fumo eventualmente, nas festas, nos sufocos. Se compro, a carteira vai toda. É uma imperfeição que carrego, parente de ter engordado muito, e que, tal qual renovar planos e práticas para emagrecer, vivo em tentativas de não cair em armadilhas.
Fumar faz mal. Cheira mal. Carrega uma das maiores perversidades do capitalismo. Eu, tão exigente com a ética, cometo esse desatino. É esporádico, mas cometo.
Dia desses foi dia de fumar bastante. Duas comemorações de aniversário na mesma noite. Duas amigas queridíssimas. Para não ficar no Se me dão, comprei e estava instalado o terror. Amigos e amigas em recaída, a calçada em frente ao maravilhoso bar lotada de cinquentonas, sessentinhas e setentões em rota de fuga. Fumando escondidos de si mesmos.
Claro, estava incluída. Iludido o efeito nefasto do dia seguinte, a dor de cabeça, as faces congestionadas, a culpa de ter influenciado o amigo com restrições sérias por causa da saúde. Todos unidos pelo dia de hoje, enfiamos o pé na jaca, como se diz. Numa jaca nefasta, poluente e horrorosa. Sem perdão.
A segunda festa era num apartamento lindo. A amiga aniversariante tem um bom gosto que comove, é um mergulho na arte, no despojamento, na sabedoria de fruir os dias por todos os sentidos. Num retrô aos anos 1980, quando éramos muito jovens, a nuvem de fumaça envolveu
o ambiente.
Quem nunca fumou não compreende como é tolamente especial essa atmosfera turva e intoxicante. Uma insensatez prazerosa e a cumplicidade de estarmos juntos cometendo a infração. A única não fumante era ex-fumante. Além de condescendente e moderníssima. Do modernismo, a rigor.
Um dia após, sei que todos estão com o mesmo sentimento. Não devia ter feito. Nunca mais faço. Até quem nega é assim que sente. Não é moralismo, consciência, sapiência. Não. É nossa alma de capetas do bem. A nossa transgressão em processo de arrependimento.
Queremos ser mais saudáveis, mais corretos, mais exemplares. Nós com o cigarro, outros com outros pecados, caímos em tentação, pois. Por nossa culpa, por nossa tão grande culpa. Queremos não recair. Queremos domingos com respiração leve, em meio às plantas da varanda, abraçados com a virtude que nos
cuida.
Uma água de coco, um banho de mar, o vento no rosto queimando ao sol.
Ah, Thanatus, sai fora que não te queremos mais!
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Tuty Osório é jornalista, especialista em pesquisa qualitativa e escritora.
São de sua lavra QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos de 2022); SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho de 2023) e MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA, dez crônicas, um conto e um ponto (crônicas e contos, também de 2023).
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