Por Tuty Osório, jornalista e escritora:
O 2025 já vara o segundo mês e fui a Brasília lançar o meu livro. O primeiro livro impresso a gente nunca esquece e é verdade que a gente se apega mais, é o tal do fetiche do objeto. Reencontrei amigos e amigas que não via há anos, foi alegre, terno, como me senti bem naquela noite. Afonso não pôde ir, mas apareceu na cidade por algumas horas, uns dias antes. Atrapalhou-se em justificar a passada e deduzi que foi mesmo para acolher a minha aventura de escritora estreante em papel. Tive outras tarefas pela capital, estava cansada no dia do nosso encontro.
Jantar no Dom Francisco como quase sempre. O dono é um brasiliense de Santa Catarina, acho. Está no DF há décadas, faz parte da cultura, por diversas gerações. A casa do Lago é a mais bonita. Sensação de estarmos num navio. Nunca estive num. Imaginação, então. Quando chegamos já passou o anoitecer, uma pena, é uma beleza o por do sol sobre o Lago Paranoá. Só que o meu trabalho acaba depois das 19, sai, não sai, até chegar ao restaurante já se foi o avesso da alvorada.
Estou receosa da conversa. Afonso anda meio neoliberal, se é que é possível ser neoliberal pela metade. Talvez seja para implicar comigo. Quando inicia a fala mostra-se em fase progressista. Respiro, aliviada. Não tenho pego muita corda, ultimamente, porém, pessoas que admiro, frequentemente têm me feito chorar quando discordamos. Uma vulnerabilidade infantil da minha parte, contudo, tem sido um fato. A frase não é novidadeira, ressuscita um assunto árduo, só que não dá para fugir.
– Se tivéssemos feito as Reformas de Base na década de 60, o Brasil seria outro – afirma o meu amigo – Foi uma pena o Jango ter recuado. Até para a elite financeira teria sido bom. O rentismo tem os dias contados. Difícil vai ser recuperar a terra arrasada que vai deixar como legado maldito – avança, firme e entusiasmado como se fosse a primeira abordagem do tema.
Suspiro ao erguer os olhos da Carta de Vinhos, excelente no Dom Francisco. Há para todos os bolsos e somente para bons paladares. Perco-me na escolha e passo a lista para ele. Recebe-a reclamando a ausência do meu comentário sobre a abertura do papo. Respondo que não sei mais, que parece que nada funciona, que seja o que que se faça, vamos sempre dar ao mesmo lugar desolado, fracassado.
-Quer dizer que vamos deixar por isso mesmo? Não dá, nunca, para fazer nada? – revolta-se. Devolvo que anda assistindo demais o canal do Jones Manoel no Youtube. Sempre redunda nisso, o cara argumenta muito bem, convence, empolga, e dá mesmo muita vontade de acreditar. Só que não estou para ilusões. Afonso fica chateado. Socorre-se de outros personagens, mais nomes em defesa do quanto teríamos avançado mais sem a ditadura.
Confesso-lhe que concordo. Faz sentido que só uma mudança no modo de produção possa tornar as oportunidades menos desiguais. O fato é que não dá para conversar muito sobre. A maioria das pessoas não consegue ver o mundo para além do capital que subordina o trabalho. Pedem-nos experiências bem sucedidas para comprovar e não as temos. Sabemos que como está não dá. São quase 100 mil pessoas em situação de rua na capital paulistana, confinadas intramuros, privadas de dignidade.
Mais uma vez, como é de praxe entre nós, vagamos o olhar em volta e mudamos para algo bem prosaico.
– Esse vinho é perfeito! Parece veludo puro!
– exclama o meu amigo. – E você já provou veludo, por acaso? – digo eu, rindo.
Ele também ri e a desgraça fica guardada pra um dia…
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Tuty Osório é jornalista, especialista em pesquisa qualitativa e escritora.
São de sua lavra QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos de 2022); SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho de 2023) e MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA, dez crônicas, um conto e um ponto (crônicas e contos, também de 2023).
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