A crônica da Tuty Osório: “Balaio de afetos”

Texto da jornalista Tuty Osório:

O filósofo não sucumbiu à falsa procura debaixo do lampião, onde sabia que não havia perdido nada, só porque estaria debaixo da iluminação. Avançou no escuro lugar onde realmente havia perdido algo que ainda estava por definir. Encontrou o Alfabeto sequestrado, o medo e a esperança em luta combinada, o circuito da falsa ordem consolidando o caos.
As palavras estão confusas. Diz um escritor, em lançamento recente, que temos que nos esforçar muito para não falar besteira, para não contribuir com nossa gota de fel para o veneno alheio. Fala da fuga da loucura, ou do que acreditamos ser a loucura.

Estamos como o personagem de Barthes, o linguista francês, ilustrando a importância das convenções da língua para a comunicação, perdidos porque as nomeações foram trocadas.
Quero dizer cama e a nova palavra é punhal. Digo amor e meus interlocutores decodificam indiferença – intempestivo significado para o antigo significante. Pior. Cada um atribui o sentido que quer, ou calha, sem pensar.

Não há mais pacto, nem pudor, nem atenção. Se você se calar no meio de uma frase, durante uma conversa com alguém, a pessoa não notará porque não estará ouvindo. Receber é uma crescente raridade.

Meu aniversário foi a 1 de maio. Quinta passada, 6 de junho, ganhei um presente de duas amigas que vejo de vez em quando, porque nossas residências principais são em cidades diferentes.
A amiga estava agitada como uma criança e me entregou com brilho nos olhos o Kindle que sabia que eu iria adorar. Chorei de emoção, mais por me saberem tanto, do que pelo óbvio valor elevado. São pessoas que falam, e, ouvem, essas amigas. Não dizem nada por dizer e escutam. Também falam, até como um outro modo de escutar.

Percebo que ainda sou uma pessoa que chora. De gratidão, ao ganhar um mimo gigante. De ressentimento em discussão política com um outro amigo, no dia seguinte – amigo inteligente e implacável porém, que se compadece, embora preferisse que eu não desabasse assim.

Também chorei de tristeza com a morte de Maria da Conceição Tavares, a economista de brilho terrível, franca coragem, que lutou por uma economia a serviço das pessoas vulneráveis, a verdadeira economia política da democracia.

Conceição era portuguesa de nascimento e amava o Brasil, tal qual eu. Não desistia, teimava, não estava nem aí para julgamentos de sua zanga apaixonada. Fico pensando que está fazendo falta a animação de criança, o choro, a escuta, a indignação por mais patética que se apresente.
Se é para confundir tanto, que seja uma mistura com nervos, pele e unhas que sangram para salvar da queda. Se é para ter medo que seja do enfrentamento da luz. E que a esperança se apresente com intensidade, sem covardia.

Eu quero é botar meu bloco na rua! Vambora?

*** *** ***

Tuty Osório é jornalista, especialista em pesquisa qualitativa e escritora.

São de sua lavra os livros QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos de 2022); SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho de 2023) e MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA, dez crônicas, um conto e um ponto (crônicas e contos, também de 2023).

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