Texto da jornalista Tuty Osório:
Era o ano de 1979. O interior do Ceará ainda era mistério. Chegada de Portugal em 1975, passando pelo Rio de Janeiro, logo em seguida Fortaleza, naquele ano parecia que a vida toda eu havia vivido ali. Que
acolhimento, que inclusão! Não é à toa que me sinto brasileira, embora não tenha me afastado completamente das minhas raízes portuguesas.
Voltando àquele ano, tive oportunidade de passar férias numa fazenda, na região de Quixadá. Menina urbana demais, nenhuma vivência com o universo rural. Talvez uns passeios em plantações de chá, em Moçambique. Ou numa pequena propriedade de amigos no interior de Portugal. Macieiras, banho de rio, queijos da serra derretidos sobre pão.
Nada chegava perto daquela imensidão, o calor intenso, a caatinga onde dava espinho em árvore frondosa.
Fascinada fiquei. Diferente da savana africana, dos pinhais uropeus, a caatinga tem uma candura…
Franzina, medrosa, porém, curiosa, logo aprendi a passear no cavalo do vaqueiro. O próprio galope me
protegia dos cortes. Eu, desastrada e inexperiente, sempre dava um jeito de me lanhar nos braços, embolar os cachos dos cabelos nos galhos espalhados. De tudo eu achava graça. O café ralo oferecido com alegria pelos moradores da estradinha. O leite mugido em caneca de lata, na madrugada antes da luz. A dança nos primeiros pingos de chuva, de braços abertos para o céu, em gratidão e glória.
Foi nesse tempo que conheci as Comunidades Eclesiais de Base. Misturadas ao povo da fazenda, falavam de igualdade, do direito à terra, da reforma agrária. Eu tinha 14 anos, era convidada do dono das terras, na prática, um intruso, ali. Ele não era, propriamente um latifundiário, mas a terra havia sido comprada em desigualdade com a gente do lugar. Fiquei angustiada ao perceber que havia conflito, havia injustiça. E eu, quem era naquele episódio de vida? Mais tarde, na escola particular católica onde eu estudava, tomei contato com o texto da Conferência de Puebla, a consolidação publicada das ideias revolucionárias da Teologia da Libertação. Sob a complacência da diretoria do colégio, o professor de religião promovia a nossa conscientização.
Eu recebia tudo com convicção. Tão diferente do mundo fora dali! Havia algo, havia um mundo a ser
contrastado com outro mundo. Assim segui até à faculdade. E venho seguindo sempre na escuta da versão dos oprimidos. Muitas vezes estou entre eles. Sufocada pelos tentáculos do Poder. Outras muitas sou cúmplice, por omissão. O filósofo mostra que, em lugar de forjar a procura sob o lampião onde não
havia acontecido a perda, há que acender um corredor de tochas para revelar a o novo tempo.
Tempo de quebra, de medo, de morte para renascer.
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Tuty Osório é jornalista, especialista em pesquisa qualitativa e escritora.
São de Tuty Osório os livros QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos de 2022); SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho de 2023) e MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA, dez crônicas, um conto e um ponto (crônicas e contos, também de 2023).
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SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA
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