Por Gilberto Nascimento, jornalista, do site The Intercept:
A megaoperação contra a facção Comando Vermelho que resultou em um massacre com ao menos 120 pessoas mortas no Rio de Janeiro foi profetizada? A pergunta foi feita nas redes sociais pelo pastor evangélico Hermes Fernandes, da Igreja Ninho da Fênix, na quarta-feira, 29.
Impossível confirmar uma profecia, mas existe uma torcida explícita por parte de políticos de extrema direita e de líderes evangélicos conservadores para que tenha início no Brasil uma “bukelização”.
Sabe o que isso significa?
Instaurar um regime ditatorial com supressão de direitos básicos, afastamento de magistrados e prisões em massa sem julgamento — exatamente como acontece hoje na ditadura de Nayib Bukele, em El Salvador.
A extrema direita tem comemorado a chacina nas redes sociais e chamado o governador do Rio, Cláudio Castro, do PL, de o “Bukele brasileiro”.
Profecias e espetacularização da violência
A tal profecia do pastor norte-americano Christopher Beleke já tinha sido publicada por mim aqui no Intercept, no início de outubro, em uma reportagem.
Apresentado como profeta em um congresso evangélico em Balneário Camboriú, em julho, Beleke, enrolado em uma bandeira do Brasil, citou a violência no Rio de Janeiro e, dizendo ouvir Deus, afirmou que “membros de governos e facções não vão estar no controle”.
Beleke é um dos inúmeros pregadores dos Estados Unidos, a maioria apoiadores do presidente norte-americano Donald Trump, que têm visitado o Brasil nos últimos meses. Esses pastores evangélicos têm trazido ao país supostas revelações sobre um “novo governo” e um “avivamento nacional”.
Nikolas Ferreira: “Se chegarmos lá, minha ideia é essa”
O deputado bolsonarista Nikolas Ferreira, do PL de Minas Gerais, também tem dado “avisos”. Enquanto se desenrolava o verdadeiro massacre na terça-feira, 28, Nikolas postou nas redes sociais uma foto com centenas de presos seminus, com a cabeça raspada, amontoados no pátio de uma cadeia em El Salvador.
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E deixou um recado: “Se algum dia chegarmos lá, minha ideia é essa. Tá avisado”. Nikolas é filho do pastor evangélico Edésio de Oliveira, da Comunidade Evangélica Graça e Paz.A celebração da chacina pela extrema direita nas redes sociais, a profecia do pastor Beleke e a postagem de Nikolas não são fatos isolados. “É a espetacularização da violência estatal. A militarização da vida”, avaliou o produtor e criador audiovisual Rodrigo Cebrian, respondendo a Nikolas.
“É a confissão pública de um projeto de poder (a “bukelização”) para o Brasil”, disse Cebrian. “Isso significa 70 mil pessoas presas arbitrariamente, 1,5% de toda a população, um estado de exceção que se tornou permanente (em El Salvador)”.
O pastor Hermes Fernandes, que questionou a profecia de Beleke, disse que quem celebra mortes como as ocorridas no Rio “está adorando um Deus diferente”, pois “Deus não deseja o mal de ninguém, nem mesmo de quem se perdeu na criminalidade”.
“Preto correndo é bandido”: pastor denuncia execuçõesO deputado Otoni de Paula, do MDB do Rio de Janeiro, pastor da Assembleia de Deus Ministério Missão da Vida, causou surpresa ao condenar com veemência a chacina no Rio, em discurso na Câmara, na quarta-feira, 29. Otoni é um ex-bolsonarista e foi vice-líder do governo de Jair Bolsonaro.
Ele denunciou que quatro filhos de fiéis de sua igreja foram mortos na chacina. “Só de filho de gente da igreja eu sei que morreram quatro. Meninos que nunca portaram fuzis. Mas estão sendo contados no pacote como se fossem bandidos”, afirmou.
“E sabem quem é que vai saber se são bandidos ou se não são? Nunca, porque nunca ninguém vai atrás. E sabem por que não? Porque preto correndo em dia de operação na favela é bandido. Preto, com chinelo Havaianas, sem camisa, pode ser trabalhador”, protestou Otoni.
“É fácil, senhoras e senhores, para quem está no asfalto e não conhece a realidade da favela. É fácil subir nesta tribuna e dizer ‘que bom, matou’. É porque o filho de vocês não está lá dentro”. O deputado e pastor revelou ter um filho também religioso que atua em uma comunidade. “E sabe qual é o meu pânico? É que ele é preto”, disse.
Denúncias de execuções, decapitações e armas plantadasAo visitar o Complexo da Penha, Otoni ouviu de familiares dos mortos na chacina que, entre os corpos, havia pessoas decapitadas, sem os dedos das mãos, com tiros na nuca e com as mãos amarradas. “Execução nesse país não podemos tolerar, ainda que o governador queira se transformar no Bukele do Rio de Janeiro. Mas nós não vamos aceitar isso”, afirmou.
No dia seguinte, o deputado e pastor fez nova denúncia: disse que um trabalhador levou um tiro no rosto quando entrava com o seu carro na comunidade e estava internado em estado grave no Hospital de Bonsucesso, na região. Segundo Otoni, policiais teriam “plantado” uma arma em seu veículo.Igrejas como a neopentecostal Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, não condenaram a matança, mas deram apoio a familiares e disseram orar pelos mortos. A Universal montou uma barraca como ponto de apoio na rua onde os corpos estavam perfilados e ofereceu água e orações aos familiares.O padre Edimar Augusto, da Basílica Nossa Senhora da Penha, na zona norte do Rio, onde ocorreram as mortes, rezou e chorou diante dos corpos. “Nunca vi nada igual”, disse.
As atrocidades seguem acontecendo
Nos meus muitos anos de carreira, testemunhei atrocidades que marcaram a história brasileira: o massacre do Carandiru, em 1992, com 111 detentos mortos, caso que acompanhei para a Folha de S.Paulo; no ano seguinte as chacinas da Candelária, onde oito meninos e adolescentes foram assassinados, e de Vigário Geral, com 21 vítimas, ambas no Rio.
Para a Istoé, estive em Corumbiara, Rondônia, em 1995, onde 12 pessoas foram mortas, sendo dez trabalhadores rurais sem-terra. Um ano depois, fiz reportagem sobre Eldorado dos Carajás, no Pará, onde 19 trabalhadores do Movimento Sem Terra foram vítimas da Polícia Militar.
Esses massacres se repetem porque parte dos políticos prefere encenação violenta a políticas públicas de verdade. O problema da violência no Rio não foi resolvido. Daqui a pouco, a cidade voltará à mesma realidade — e eles buscarão a próxima operação espetáculo para fingir que governam.


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