Por Humberto Junior (foto à esquerda), professor-doutor, especialista em Engenharia Urbana, mestre e doutor em Saneamento Ambiental e professor do IFCE (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará):
Diariamente, um adversário insidioso e muitas vezes ignorado emerge silenciosamente de nossos resíduos, tecendo uma rede de contaminação que ameaça rios, lagos, aquíferos e até a água que chega às nossas casas. Estamos falando do chorume, um líquido tóxico que, apesar de sua gravidade, raramente ocupa o centro das discussões públicas. Mas deveria!
O que é, afinal, o chorume?
Quando pensamos em lixo, lembramos daquilo que vemos: sacos de resíduos, montanhas em aterros ou lixões a céu aberto. No entanto, o verdadeiro perigo reside no que não vemos: o chorume, também chamado de lixiviado ou percolado. É aquele líquido escuro, de odor penetrante e desagradável que se forma pela decomposição da matéria orgânica, pela presença de elevada carga inorgânica e pela infiltração da água da chuva que atravessa a massa de lixo, arrastando consigo os subprodutos da decomposição.
Esse líquido não é apenas um problema estético. É um verdadeiro coquetel químico, contendo: metais pesados, amônia em altas concentrações, sais, pesticidas, nitratos, nitritos, restos de fármacos (antibióticos, hormônios, analgésicos), além compostos orgânicos persistentes (moléculas que não se degradam na natureza).
Quando o chorume se infiltra no solo e alcança os lençóis freáticos, rios ou lagos, ele pode comprometer ecossistemas aquáticos inteiros e até o abastecimento público de água. Não se trata apenas de mau cheiro, mas de riscos sérios e reais à saúde pública como doenças, distúrbios hormonais, contaminação da cadeia alimentar e danos irreversíveis à biodiversidade.
A Legislação existe, mas a prática falha
O Brasil não carece de arcabouço legal para abordar a emblemática questão. A Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei nº 12.305/2010) preconiza o tratamento ambientalmente correto dos resíduos. A Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/1997) e a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/1981) reforçam a proteção da água como prioridade. Adicionalmente, resoluções do CONAMA — em particular a nº 357/2005 e a nº 430/2011 — são explícitas: efluentes perigosos, como o chorume, não podem ser simplesmente diluídos; eles exigem tratamento específico e robusto.
Contudo, a realidade no Brasil ainda mostra uma prática preocupante: o chorume é frequentemente armazenado em lagoas, muitas delas improvisadas dentro dos próprios aterros, ou é encaminhado para estações de tratamento de esgoto doméstico (ETEs). O problema é que as ETEs não foram projetadas ou construídas para lidar com a complexidade, periculosidade e a agressividade do chorume. Enquanto conseguem remover matéria orgânica comum, são absolutamente ineficazes contra a carga inorgânica, pesticidas, metais pesados, compostos nitrogenados, ácidos húmicos ou fármacos. O resultado? O problema não é resolvido; é apenas maquiado, “diluído para a eternidade” nos corpos d’água.
Um olhar global: a luta contra os poluentes emergentes
Lidar com o chorume é um desafio global. Muitos países têm endurecido suas regulamentações para o tratamento de lixiviados, impondo limites cada vez mais rigorosos para substâncias perigosas. Um foco crescente tem sido os poluentes emergentes, como os PFAS (substâncias per- e polifluoroalquiladas) — popularmente conhecidas como “substâncias eternas”. Estes compostos não se degradam no meio ambiente e estão associados a sérios riscos à saúde, incluindo efeitos cancerígenos, teratogênicos e mutagênicos. Nos Estados Unidos, na Europa e em algumas partes da Ásia, o debate sobre esses contaminantes, recentemente identificados em alta concentração nos lixiviados de aterros sanitários, é intenso e já molda políticas públicas. O Brasil precisa integrar-se essa discussão técnica para proteger a saúde de sua população e evitar um atraso tecnológico e ambiental.
Números que assustam
A matemática é simples e revela a dimensão do problema: em regiões com uma pluviosidade média de 1.500 mm/ano, cada indivíduo gera indiretamente entre 0,2 e 0,4 litros de chorume por dia apenas com o lixo que descarta. Multiplicando essa quantia pelos mais de 200 milhões de brasileiros, chegamos a dezenas de milhões de litros diários. É o equivalente a encher várias piscinas olímpicas com um líquido tóxico e perigoso, dia após dia.
O que precisamos encarar
Dar visibilidade ao chorume gerado por lixões ou aterros sanitários é olhar para a face mais oculta da crise dos resíduos sólidos urbanos. Não basta encerrar lixões ou enterrar adequadamente os resíduos em aterros sanitários e achar que o problema desapareceu.
É preciso implantar soluções tecnológicas adequadas, para o tratamento eficaz do chorume, especialmente contra poluentes emergentes e substâncias não degradáveis. Fiscalização rigorosa e contínua garantindo que as normas sejam cumpridas e desenvolvimento de políticas públicas robustas que tratem esse efluente com a seriedade e o rigor que ele demanda.
Ignorar o chorume é fechar os olhos para um passivo ambiental silencioso, mas com potencial devastador. Enfrentá-lo, por outro lado, é um passo decisivo para assegurar rios mais limpos, cidades mais seguras e um futuro menos tóxico para todos nós.