Artigo dos juristas Marcelo Koken e Talden Farias, originalmente publicado no site Consultor Jurídico:
Nos últimos anos, cada vez mais têm surgido manifestações sociais questionando o turismo de massa e os seus impactos negativos sobre as cidades. Em Amsterdam, Barcelona, Paris ou Roma, por exemplo, a presença turística tem sido identificada negativamente em razão do aumento no custo de vida em geral, com especial destaque para alimentação e moradia.
A comunidade local passa a perceber os turistas como um risco, uma espécie de ameaça de natureza econômico-social, e não mais como uma forma de gerar desenvolvimento e oportunidades. Se mostra a sua face de exclusão e/ou de maquiagem social nos países e economias centrais, é evidente que o turismo não deixaria de apresentar tais efeitos também nos países periféricos, como é o caso do Brasil e dos demais países da América Latina, não obstante as características próprias.
A turistificação é comumente definida como processo de desenvolvimento ou implementação de atividade turística em área do território, com promoção de fatores atrativos para a atividade turística. Entretanto, como já se destacou, isso não significa apenas benesses, uma vez que impactos negativos também ocorrem. Nos países periféricos, e mesmo nos países centrais, as atividades turísticas podem resultar em um processo progressivo de ilhamento socioeconômico, com fomento de estruturas e padrões de exclusão social, gerando uma verdadeira modalidade de “gentrificação turística”.
A recente alteração na Política Nacional de Turismo (Lei 11.771/2008), por meio da Lei 14.978/2024, traz avanços ao reconhecer o turismo como um fenômeno social, cultural e econômico. Entretanto, a implementação prática dessas diretrizes depende de ações concretas que considerem a inclusão das comunidades locais no planejamento e na gestão. É necessário, por exemplo, fortalecer a aplicação da função social da propriedade e da cidade, a primeira prevista nos arts. 5º, XXIII e 170, III e a segundo no artigo 182, caput da Constituição Federal de 1988, de modo a tentar assegurando assim que o turismo não se transforme em uma força excludente.
A gentrificação [1] é vinculada à análise crítica de gestão do território, na qual a alteração implementada na estrutura local, com benfeitorias públicas e privadas, acarreta valorização econômica e elevação do custo de vida e/ou dos meios de exercício da vida cotidiana no local, desencadeando afastamento ou deslocamento de coletividades com menor potencial aquisitivo. A turistificação ligada à gentrificação se processa de forma similar, e acaba potencializando ainda mais esse processo.
A fixação de redutos turísticos em gentrificação representa em seu fator crítico a criação de ilhas de segurança, regularidade, bem-estar e alta rotatividade econômica. Em favor do exercício turístico, forja-se um perímetro imaginário (e com implementação de atuação estatal impositiva) no qual fatores como saúde, educação, segurança pública e organização do território se mostram específicos e, por vezes, antagônicos a outros locais existentes no município, região ou estado.
O cenário não é novo no Brasil, antes pelo contrário. Locais turísticos contam geralmente com policiamento próprio e circunscrito, planejamentos reativos em relação a demandas por saúde, gestão diferenciada em relação à educação, estabelecimentos comerciais e mesmo em relação à aplicação das normas urbanísticas pertinentes tanto ao código municipal de posturas urbanas quanto à regulação do direito de construir e às condições do patrimônio público. Apesar de não ser nova, a questão ganha articulação a partir dos conflitos sobre turismo ocorridos principalmente nos países europeus.
Turistificação apresenta desafios específicos no Brasil
Em locais como Fernando de Noronha ou Jericoacoara, que abrangem Unidades de Conservação [2], o turismo em larga escala ameaça a integridade ambiental e cultural, transformando territórios em “ilhas de privilégio” voltadas exclusivamente ao visitante mais rico, com custos elevados para as comunidades locais. Essa segregação socioespacial eleva os custos de alimentação e de moradia, dificultando o acesso de moradores originais a recursos básicos, podendo chegar até a “expulsá-los” do lugar. A ironia é que muitas vezes foi exatamente essas pessoas mais humildes, que a depender do caso podem se enquadrar como população tradicional, que contribuíram para a manutenção dos atributos naturais que hoje geram o adensamento e a pressão turística.
De fato, no Brasil houve uma naturalização do fenômeno da turistificação ligada à gentrificação, não somente em relação aos mecanismos de exclusão, mas sim em relação aos mecanismos de geração de territórios diversos no espaço de vida que se sujeitam a diferentes regras de atendimento e atenção tanto em esfera pública quanto em esfera privada. É como se houvesse uma cidadania de classe especial quando fatos ou ocorrências se passem em espaços turísticos privilegiados.
Se a crise do turismo na Europa passa pela resistência ou recusa dos moradores locais em ter em seu território o turismo excessivo, e por vezes predatório, que afeta seu modus vivendi, no Brasil a crise que se desenha e se infla de forma oculta todos os dias diz respeito às ilhas turísticas em território nacional. Nesses locais, há uma órbita de serviços públicos e privados que constroem verdadeira fração de cidadania especial no espaço urbano. Os níveis de gentrificação ganham novos patamares de revolta potencial.
Isso não significa, evidentemente, privar a estrutura turística de serviços públicos e privados que lhe tornem atrativa para os visitantes. Ao inverso, não se desconhece o valor da movimentação econômica e socioeconômica ligada ao turismo. O ponto é justamente a necessidade de uma gestão de política pública eficaz e planejada para que o ilhamento já existente não venha a desaguar em crises que prejudiquem a sociedade de foram geral, e até o próprio turismo. Alinham-se o meio ambiente cultural e as normas urbanísticas, considerando a função social da propriedade, como destaca Norma Sueli Padilha [3].
Se a Europa não foi capaz de antever e gerir a crise de fatores ligados ao turismo, não pode o Brasil percorrer o mesmo caminho de negação de crise futura, e já até presente em alguns casos, sob o risco de comprometimento da própria Política Nacional de Turismo. Antever e gerir fatores de crise é o melhor caminho para evitar que eles ocorram, ou ao menos reduzir sua gravosidade. No caso brasileiro, a gestão demanda atuação de forma a reduzir as disparidades de serviços públicos e atividades privadas nas áreas turísticas em relação às áreas externas ao perímetro territorial marcado como espaço protegido da atividade turística. Sem uma efetiva gestão ambiental e territorial [4], não apenas se inviabiliza a sustentabilidade, mas se alicerçam fatores de injustiça ambiental e crises de legitimidade das estruturas econômico-sociais.
O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001) exige que o uso do solo urbano respeite a inclusão social e ambiental, e obviamente turismo deve trabalhar em prol disso – e não o contrário. Não se pode esquecer que o artigo 2º, IX dessa lei dispõe que a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade mediante a “justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização”. A cidade e a cidadania não podem ser seletivas, criando circuitos segregados ou grandes assimetrias no acesso a direitos e a serviços públicos. O artigo 180 da Constituição, ao dispor que “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios promoverão e incentivarão o turismo como fator de desenvolvimento social e econômico”, não pode deixar de levar em conta as políticas ambiental e urbana, nem se esquecer de que a redução das desigualdades regionais e sociais é um princípio da ordem econômica também previsto em seu artigo 170, VI, sendo ainda um dos objetivos fundamentais da República previsto no artigo 1º, III.
A inclusão de princípios ESG no setor turístico é fundamental. Empreendimentos turísticos podem adotar práticas de governança que evitem e/ou mitiguem impactos ambientais negativos e promovam a equidade social. Exemplos como o de Bonito, que controla o fluxo turístico para proteger seus recursos naturais, demonstram que é possível alinhar turismo e sustentabilidade. Como ensina a fábula, não se pode “matar a galinha dos ovos de ouro”, pois a turistificação com o passar dos anos poderá diminuir o próprio interesse turístico pelo lugar [5]. O próprio Plano Nacional de Turismo 2024-2027 já prevê diretrizes de sustentabilidade e inclusão comunitária.
Além disso, a justiça ambiental deve orientar as políticas públicas voltadas ao turismo. Isso significa assegurar que comunidades locais tenham acesso equitativo aos benefícios gerados pela atividade, incluindo melhorias em infraestrutura e educação. Sem essas medidas, o turismo no Brasil corre o risco de replicar as crises observadas em destinos como Barcelona ou Veneza, onde o turismo descontrolado resultou em resistência e protestos por parte da população local. Deve ocorrer a efetiva inserção tanto do capital quanto do mercado de trabalho nas comunidades adjacentes. Essa previsão constou de forma expressa na recente Lei 14.978/2024, que conferiu nova redação ao artigo 5º, incisos VI e IX.
O envolvimento e a participação das comunidades beneficiadas pela atividade econômica do turismo demandam uma efetiva aplicação de recursos que possibilite a percepção (realística) de que a atividade está a contribuir para sua melhoria de qualidade de vida e valorização de sua identidade cultural. A percepção de estigmatização ou de ilhamento de benesses turísticas na gentrificação é uma latente causa de conflito. Relegar a segundo plano essa dimensão de risco de colapso estrutural das ilhas turísticas, ignorando a turistificação em gentrificação, poderá levar a crises similares, embora diversas, das hoje vivenciadas na Europa.
Como o turismo no Brasil é uma indústria mais nova e menor, não se pode e não se deve repetir a trilha europeia da omissão. Como o turismo está se tornando uma força de fragmentação urbana em alguns lugares, é preciso que as políticas públicas tratem do assunto com seriedade e de forma interdisciplinar, pois o desafio não é apenas regular, mas garantir justiça espacial. Esse tema também deverá estar à mesa das instituições integrantes do Sistema Jurídico, especialmente por meio de uma atuação preventiva do Ministério Público e da Defensoria Pública, uma vez que a turistificação não pode ficar invisível ao Direito.
[1] Neil Smith aponta o seguinte como como diagnóstico do processo de desenvolvimento urbano que contribui para a gentrificação e as suas implicações econômicas: i) a suburbanização e o aparecimento de um diferencial em termos de renda, ii) a desindustrialização das economias capitalistas avançadas e o crescimento do emprego no setor de serviços, iii) a centralização espacial e simultânea descentralização do capital – a queda na taxa de lucro e os movimentos cíclicos do capital e iv) as mudanças demográficas e nos padrões de consumo (SMITH, Neil. Gentrificação, fronteira e a reestruturação do espaço urbano. GEOUSP – Espaço e tempo, São Paulo, n. 22, p. 15- 31, 2007, p. 21-22).
[2] De acordo com o art. 2º, I do Sistema Nacional da Unidades de Conservação da Natureza (Lei 9.985/2022), unidade de conservação é o “espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção”.
[3] Padilha, Norma Sueli. Fundamentos constitucionais do Direito Ambiental Brasileiro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 414.
[4] Seiffert, Mari Elizabete Bernardini. Gestão ambiental: instrumentos, esferas de ação e educação ambiental. São Paulo: Atlas, 2014.
[5] A respeito do assunto, Álvaro Ferreira pontua o seguinte: “O caminho da turistificação é ele mesmo paradoxal; esclareço: ao tornar-se objeto do turismo de massa, a cidade tornou-se ela mesma uma mercadoria. Já deixamos claro anteriormente, em outras publicações, o conceito de mercadificação do espaço, é a partir desse sentido que afirmamos que as cidades são mercadificadas. Seguindo essa racionalidade, os empreendedores procuram “vender” as cidades, e para isso acabam copiando aquilo que “deu certo” em outros lugares. Com isso, vivenciamos uma homogeneização das paisagens turísticas das cidades, o que se mostra um paradoxo, visto que isso acaba por destruir as especificidades dos lugares; ou seja, aquilo que era o motivo da atração dos turistas – o diferente – acaba sendo transformado e homogeneizado. De alguma forma, trata-se daquilo que denominei banalização do espaço9, ou em outras palavras, na produção de uma espécie de urbanização banalizada” (A gentrificação não é um efeito colateral: complexificando o conceito para revelar objetivos escusos. Ateliê Geográfico – Goiânia/GO, v. 15, n. 1, abr/2021, p. 91-92).
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é pós-doutor em Direito pela Universidade de Santiago de Compostela e doutor e mestre em Direito pela PUC-Rio, procurador federal e coordenador nacional de Assuntos Estratégicos e Responsabilidade Civil — PFE-Ibama e professor de Direito Ambiental da Faculdade Dom Helder Câmara e da Escola da AGU.
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é pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne, advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental (UBAA).