Crônica de Alberto Perdigão: “A casa-museu e o museu do descaso” (Ou “O legado de Christiano Câmara precisa ser reencontrado pelo público”)

Texto do jornalista Alberto Perdigão, escritor e voluntário na campanha pela reabertura da Casa de Christiano Câmara:

Christiano Câmara, memorialista cearense, com o apresentador Jô Soares (Reprodução YouTube)

Batia palmas no portão de ferro trabalhado como quem aplaude o espetáculo de uma casa inteira e das relíquias da memória que se guardavam nela. Travessa Baturité, antiga rua da Escadinha, número 162, margem direita do riacho Pajeú, alto da duna de onde ainda se veem os resquícios da cidade de 100 ou mais anos atrás.

“Já vai”, gritavam lá dentro, e logo me aparecia o Christiano Câmara abotoando a camisa, meio caxingando, dizendo qualquer coisa, o molho de chaves tilintando na mão e aquele som inconfundível da chinela de couro arrastando no ladrilho. O coxear parecia mais um cesto de quem carregava um peso nas costas. E a camisa, não raro, ficava com um botão desencontrado.

“Quem é vivo aparece, alma existe”, dizia ele com um largo sorriso, aquele jeito irônico, provocante, reclamando das minhas visitas bissextas. “Olha aí, Douvina, quem está aqui”, anunciava-me à sua amada, incondicional companheira e companhia de jornada, introduzindo-me àquela casa-museu.

“Mas rapaz, não é mesmo?”, admirava-se com a minha presença. “Ainda bem que eu acabei de fazer um café”, completava a recepção. De fato, o cheiro do pano quente vindo da cozinha ainda estava no ar. Parece que a fumaça preferia defumar a casa a perfumar o quintal.

O tema do café sempre dominava o começo e o final da visita. Depois de algumas xícaras franqueadas e de muita conversa, Douvina, na despedida, com humor discreto e fino, dizia: “Venha sempre, mas, da próxima vez, traga o café”. O Christino já esperava a hora da espetada, e só ria. Passei a levar a sério a piada e, a cada nova visita, um pacote de café era entregue na bilheteria.

*** ***

Estes dias, voltei à casa com o pacotinho na mão. Fui recebido por uma das filhas do casal, a Zuleica. É ela quem cuida do imóvel fechado e do acervo inacessível. Nunca imaginei que isso pudesse ocorrer com uma casa que esteve sempre aberta, durante mais de 50 anos.

Para todo e qualquer pesquisador, jornalista ou interessado em conhecer o que ainda não estava nos livros de música, de cinema e de fotografia, a entrada era gratuita, a circulação franqueada a todos os cômodos. Discos empilhados até debaixo da cama do casal, equipamentos antigos por toda parte.

Para cada visitante, Christiano dava uma aula da maior qualidade, daquelas que o sujeito não teria em lugar nenhum. Uma vez, fui falar que gosto da música-tema do filme Aeroporto (1970), composta por Alfred Newman, e ele falou durante mais de uma hora sobre as melhores curiosidades dos maiores temas do cinema.

Dias depois, ligou dizendo que me havia gravado uma fita com todas aquelas músicas de que falamos. Ele não fazia isso só para mim…

Outra vez aprendi que a música popular do Brasil acabou, dizia ele, quando começou a Música Popular Brasileira, “a tal MPB”. E foram muitos os exemplos de compositores e cantores de camadas populares que, mais com talento que com marketing, ajudaram a fincar as bases da nossa brasilidade musical.

O Christiano era assim…

*** ***

A Zuleica recebeu o pacote de café, imediatamente me levou para a cozinha, tirou do armário o conjunto de xícaras Duralex. Brindamos o meu reencontro com a casa e conversamos muito. Contou Zuleica que ela e a irmã estão numa luta para encontrar uma solução sustentável para o restauro e para a preservação do acervo.

E eu fiquei pensando que o Christiano e a Douvina tentaram a vida toda fazer uma parceria neste sentido, mas só encontraram ouvidos de mercador.

Explicou que entes do Estado, mercado, sociedade do Ceará, incluídas as instituições de educação e de cultura, estão sendo chamados a construir um projeto de gestão compartilhada com a família. E eu fiquei lembrando do prédio do hotel Iracema Plaza levado à ruína para justificar sua covarde demolição.

Argumentou que a casa-museu precisa ser reaberta ao público, para dar utilidade a uma das maiores e mais valiosas coleções de discos, filmes, fotos e equipamentos antigos do país. E eu fiquei me perguntando por que odiamos tanto a nossa memória e pagamos tão caro para visitar o museu de outros, em outros lugares.

O filme está sendo feito pelo primo da Zuleica, o cineasta Márcio Câmara, sobre Douvina e Christiano, sobre memória e esquecimento, sobre a casa-museu e o museu do descaso. Sim. O principal objeto que a casa expõe hoje é o abandono, expressão do que temos de pior. Mas podemos melhorar, eu acredito.

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