Artigo de Georges Humbert, advogado, professor, pós-doutor (Coimbra/Portugal), doutor e mestre (PUC-SP) em Direito, presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Sustentabilidade, palestrante e escritor:
Uma denúncia caluniosa, quando feita a autoridades, configura um crime, conforme o artigo 339 do Código Penal. A Lei contra o Abuso de Autoridade (Lei 13.869/2019) também aborda situações de abuso de autoridade, tipificando crimes praticados por agentes públicos que excedem seus limites de atuação.
Nenhum servidor público pode causa à instauração de um procedimento contra alguém, imputando-lhe um crime, infração ético-disciplinar ou ato ímprobo, sabendo que a pessoa é inocente. É comum isto acontecer contra advogados atuantes e firmes, ou contra ex-servidores em cargo de confiança, por burocratas que diferem da posição política, ideológica ou do governo anterior, ou diverge da decisão tomada ou mesmo acha que viu algum crime ou irregularidade na atuação do colega. Também visam advogados que, em defesa de seus clientes, os enfrentam, recorrem e mesmo judicializam as questões, geralmente com êxito. A pena para esses detratores que saem denunciando e representando injustamente é alta: reclusão de dois a oito anos e multa.
Portanto, muito cuidado ao imputar falsamente a prática de um crime, ou dar causa à instauração de inquérito policial ou processo administrativo contra alguém que não cometeu a infração. Não somente para resguardar a honra e imagem do denunciado, a denúncia caluniosa visa proteger a administração da justiça e evitar que pessoas inocentes sejam injustamente perseguidas.
Essa conduta também se enquadra como crime de abuso de autoridade (dar início a um processo sem justa causa ou contra quem se sabe inocente, ou praticar atos arbitrários). Em alguns casos, uma denúncia caluniosa pode ser o ponto de partida para um abuso de autoridade. Se um agente público, baseado em uma denúncia falsa, inicia um procedimento sem justa causa, ele pode estar cometendo abuso de autoridade. A Lei contra o Abuso de Autoridade também prevê a punição de agentes públicos que, ao receber uma denúncia caluniosa, a utilizam para prejudicar alguém, mesmo sabendo que a denúncia é falsa, ou não para em pé, ou desprovida de maiores fundamentos e indícios mínimos de materialidade e autoria.
Mentira contada mil vezes…
Destaca-se o artigo 27 da Lei 13.869/19, que apresenta a seguinte redação, in verbis: “Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa: Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa. Parágrafo único. Não há crime quando se tratar de sindicância ou investigação preliminar sumária, devidamente justificada”.
Quando se trata de ato perpetrado contra advogado, o cenário do denunciante se agrava, pois atenta contra função essencial à administração da justiça, dotado de prerrogativas e imunidades, malferindo uma das principais bases da democracia livre, razão pela qual tal conduta se enquadra, ainda, no artigo 7-B, na Lei 8.906/94, do Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, tipificando o crime de “violar direito ou prerrogativa de advogado previstos nos incisos II, III, IV e V do caput do art. 7º desta Lei”, com pena de detenção, de dois a quatro anos, e multa.
Como lembra Fernando Capez, que, assim como eu, já foi vítima e venceu denunciação caluniosa e abuso de autoridade de servidores públicos, “Joseph Goebbels, ministro da propaganda nazista de Adolf Hitler, certa vez afirmou: “Uma boa mentira repetida centenas de vezes, acaba se tornando uma verdade”. A mentira contada por agentes públicos geralmente traz resultados danosos, e às vezes, como no caso de Goebbels, catastróficos. No âmbito criminal, seus efeitos são graves. A acusação maliciosa reforçada pelo strepitus provocado pela mídia intimida e tem idoneidade para gerar primazia cognitiva no julgador e, assim, dar aparência de veracidade a um fato irreal, uma tautológica “verdade verdadeira”.
É inegável que a simples existência de uma investigação causa prejuízos aos réus, que, desde logo, tornam-se alvos de um juízo moral de reprovação a macular a imagem dos envolvidos. Por isso é essencial que a fase de defesa prévia seja efetivamente encarada como uma etapa essencial do processo, e não simplesmente uma obrigação processual, pois é nela que devem ser barradas ações manifestamente improcedentes, mal dirigidas e precariamente formuladas, sem documentação ou elementos mínimos de prova, sem identificação e quantificação do dano, e até sem a imputação de conduta, simultaneamente dolosa e de má-fé, porque ninguém é improbo, corrupto ou desonesto por mera culpa, ainda que a chamada culpa grave.
Com efeito, na Lindb, o artigo 22 prescreve que a interpretação das normas sobre gestão pública deve considerar a realidade e os obstáculos enfrentados pelos gestores, sem prejuízo dos direitos dos administrados, combinado ao artigo 28, que dispõe que o “agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”.
Veda-se, assim, a utilização de valores jurídicos abstratos, limitando o uso de expressões genéricas e conceitos jurídicos indeterminados, impedindo ações com base em imputações genéricas, decisões vazias imotivadas que não façam a análise da realidade fática no caso concreto. Aqui a defesa previa poderá demonstrar violação a esses dispositivos, ensejando o fim sumário da demanda.
Pá de cal
Finalmente, a Lei da Declaração da Liberdade Econômica, em seu artigo 1, determina que “interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas”.
Tal regra explícita deixa claro e sem margem de dúvidas, pondo uma pá de cal numa lógica até então dominante em searas punitivistas, da interpretação e aplicação da norma e das restrições em favor do erário, implicando em uma presunção tácita dos atos dos agentes públicos e dos particulares que com estes se relacionam. É preciso prova indiciária substancial de dano e dolo, bem descrita, correta e precisa da conduta, com a tipificação adequada e clara na lei, para se imputar e propor uma denunciação ou abrir investigação, condições que, acaso não preenchidas, devem ser objeto de dura reprimenda do falso denunciante ou de quem abre a investigação com manifesta injusta causa.
Portanto, nunca se deve representar por vingança, divergência pessoal, para intimidação, por motivos políticos, ideológicos ou por não concordar com a outra parte, muito menos para mostrar serviço, com mudança de governos, para escalar ou se manter em cargo, ou porque se sentiu derrotado, como tem ocorrido, com maior acentuação, após a polarização política vigente e as pautas de esquerda e extrema direita, personificadas em dois políticos que disputam o poder no país e seus asseclas.
O Estado democrático de Direito e nossa Constituição não toleram convivência com o mero recebimento de denúncia, investigação ou processo de qualquer natureza que seja temerário, com denúncia vazia, genérica, subjetiva, ainda mais em se tratando de um processo de alto grau de exposição, de graves consequências desde a sua instauração, passando pela mera intimação para prestar esclarecimentos, com manchas indeléveis na sua imagem e honra, a qual pode, ademais, tirar a disponibilidade de bens, o cargo e mesmo o bem maior de qualquer indivíduo: a sua cidadania.
Assim sendo, “baixada a poeira”, o denunciado caluniosamente e o que sofre por abuso de poder deve ir atrás de todos os seus algozes, para fins de responsabilização criminal, civil e administrativa, a fim de evitar que essa gente, muitas vezes portadoras de uma autoproclamada superioridade moral, façam novas vítimas, geralmente condenadas no tribunal da internet. Não se pode brincar com a história, a imagem, a família e, no coloquial, o CPF limpo, quem pode ser os únicos, ou mais relevantes ou o maior patrimônio da pessoa.