Texto do juiz de Direito Durval Aires Filho, publicado originalmente no site Segunda Opinião:
No final do ano passado, antes da conclusão do recesso de dezembro, recebo em meio digital o livro Precisamos Falar do Ceará, de autoria do economista e jornalista Osvaldo Araújo, meu editor nas colaborações que envio ao jornal Segunda Opinião.
O livro ultrapassa a mera noção de coletânea de textos (foram publicados separadamente no espaço do mencionado jornal) na medida em que entrega uma leitura articulada dos últimos sessenta anos de história política e econômica do Ceará, foco no que foi relevante.
É uma obra necessária, não só pelos temas que aborda com percuciência, questionando modelos político e econômico do Ceará no período, mas também pela forma como arrebata essas questões, com uma narrativa branda, sem viés partidário, orientadora, objetiva e fácil de ser lida.
O livro não fecha questões, na verdade abre-as. Pode ser percebido como um norte, uma bússola, daí por que efetivamente precisamos falar mais do nosso povo e dos nossos destinos. E é preciso falar de forma clara e aberta, nos diversos espaços institucionais, públicos, seja nas repartições, nas universidades, nas assembleias, assim como na informalidade dos bares e instâncias de lazer.
Os temas que as páginas trazem em linguagem acessível suscitam reflexões necessárias, evocam opiniões calcadas na realidade e revelam como as decisões politicas são tomadas e estabelecidas como prioridades.
Sem debate, sem prestação de contas, sem medidas confiáveis de resultados, parece que seis décadas foram pouco. Ninguém parou para pensar, por exemplo, sobre determinados ganhos e perdas, erros e acertos, vitórias e fracassos.
Osvaldo vai direto ao ponto e faz questionamentos sobre a Siderúrgica, o Porto do Pecém e a ZPE, e não são muito lisonjeiros. Essas conquistas engoliram décadas. E muitos recursos.
Sua força transformadora, entretanto, está, por mil razões, um tanto reduzida.
Nas palavras de Osvaldo, seu efeito multiplicador de riquezas só será perceptível se for muito bem focado. Ou seja, foi uma decisão politica importante, mas certamente onerosa e a demandar muito longo prazo para surtir efeito.
E assim a leitura questiona a relação custo-benefício, permeia um terreno duvidoso, no sentido de que haveria outras alternativas.
O jornalista, com uma enorme capacidade de comunicar, e o economista que aprofunda o debate, sem meias palavras, lamenta que o ponteiro da participação do Ceará no PIB deveria dobrar, mas não dobrou. A prosperidade também deveria chegar aos cearenses, mas não chegou. E, com a mesma sensação de vazio, a miséria deveria ter desaparecido, porém, não desapareceu, concluindo que os sessenta anos que esse projeto político consumiu ainda não foram o suficiente para produzir esses resultados esperados.
E aqui vemos os cearenses como no mito de Sísifo, cuja vida moderna é simbolizada pelo trabalho repetitivo e sem propósitos, retomando sempre a incessante busca de sentido.
Ao contrário dessa redenção, o que se lê nos jornais é a informação de que a metade da população cearense apenas sobrevive graças a fundos federais de assistência social. Lê-se também nas editorias de opinião que o Ceará é proporcionalmente o estado com maior número concentrado de bilionários, em descompasso com a maior escala de miseráveis.
A conclusão evidente é que o estado continua concentrando sua riqueza entre poucos, como se estivéssemos ainda na velha politica atrasada e estúpida das oligarquias, ou ainda em mãos dadas com a famigerada indústria da seca, felizmente banida, mas ainda hoje comentada entre desinformados.
Em uma série de capítulos emblemáticos dessa preciosa obra, Osvaldo recorda episódios específicos que ajudam a compor o retrato de um Ceará em busca de desenvolvimento.
Dos anos 1960, com a profissionalização da gestão pública, até as promessas e oportunidades não concretizadas dos anos 2000. Cada capitulo se torna um convite a diversos questionamentos, ampliando o horizonte de discussão e debate. Realmente precisamos dessa conversa franca sobre nossas vidas e nossos destinos.
A crítica objetiva e coerente que o autor tece não poupa os setores públicos e privados, coloca ambos na cena histórica. Dos governantes condena a falta de transparência e a incapacidade de promover um progresso equilibrado, retirando o Ceará de sua debilidade crônica, aguda.
SANTO DE CASA NÃO OBRA MILAGRES
Qual seria a razão dessa debilidade administrativa da maior parte dos nossos governantes? Nessa linha do famoso adagio popular, seria mais fácil contar com a ajuda de estranhos do que com aqueles que são mais próximos, ou foram eleitos para fazer acontecer os alegados milagres.
Segundo Osvaldo, a primeira desculpa parte dos próprios governadores que costumam dizer que o dinheiro é todo “carimbado“, que eles não podem fazer nada porque a destinação dos recursos financeiros é completamente engessada. Ou seja: grande parte desses recursos são vinculados e tem endereço certo, não podendo o executivo dispor desses recursos de forma livre e voluntária. E, como aborda o autor, “cada governador faz referência a um percentual de destinação obrigatória que lhes tira o poder e a liberdade”.
Uma segunda ponderação se ancora na descontinuidade da gestão quando assumem as respectivas administrações. Essa mudança provoca uma interrupção dos programas e projetos, e isso reduz, ou elimina, o impacto positivo que o investimento poderia ter na verdade. O autor reconhece que essa questão praticamente desapareceu nos últimos quarenta anos.
Uma terceira e última razão — e essa narrativa tem relação direta com a crença popular de que santo de casa não obra milagres — é que o desenvolvimento do estado do Ceará depende muito mais do Governo Federal do que do governo estadual. A rigor, os estados são dependentes das transferências e fundos de participação que União reparte entre eles. Dependem também de financiamentos que ela outorga, parcelamento de dívidas, ou obrigações de pagar em atraso e são carentes de apoios para o seu desenvolvimento. Nesse quadro de dependência, sopesados vários aspectos políticos, que entram as famosas emendas para obras públicas e equipamentos coletivos,conforme avalia Osvaldo, os governadores passaram a refletir de forma cuidadosa “que a soma de recursos e instrumentos de que dispõe Brasília é mais relevante e decisiva do que a que os governadores manuseiam”. O livro argumenta em tempos recentes uma certa harmonia entre Estado e União, como regra geral, a desarmonia como exceção.
A questão vexatória desvendada pelo autor é que a cada quatro anos um governador eleito administra cento e vinte bilhões e, se for reeleito, logicamente, isso duplica para duzentos e quarenta bilhões. Ainda assim, mesmo contando com esse volume expressivo em dinheiro, não haveria condição de promover o desenvolvimento de nosso povo, afastada a crença nesse provérbio que remonta tempos tão longevos?
Outras ponderações existem: uma delas dirá que o Ceará se desenvolveu muito bem ao longo dessas seis décadas.
A argumentação é fragmentada: porque várias experiências inovadoras, como a exploração da indústria do turismo, foram exitosas; recentes balaços do setor elevam o Ceará como a terceira posição de preferência entre os turistas nacionais e estrangeiros, sendo superado apenas pelos os estados do Rio de Janeiro e São Paulo.
Outras avaliações, menos otimistas, em direção oposta, dirão que a pobreza do Ceará é tão aguda e tão crônica que está na “casa do sem jeito”. Como dizem os juristas, pertencem à “coisa julgada”, para dizer que não há mais recursos avalizados pelo Direito.
O GENIO ESCAPOU DA LÂMPADA
Normalmente, essa possibilidade de fuga do gênio mantido por Aladim, que tem poderes para cumprir desejos ilimitados, simbolicamente está ligada a pessoas que realizam importantes trabalhos, mas sobre os quais não se tem a certeza de seus propósitos, e, aí, aplicando essa máxima popular ao livro de Osvaldo, parece necessário voltarmos ao Porto do Pecém para discutimos algumas premissas vinculadas ao custo e benefício.
O autor classifica o Porto como um empreendimento que teve um colossal investimento e muitos segredos, os quais, acrescento, nem sempre estão guardados a sete chaves, e que certamente deveriam estar abertos à imprensa mais investigativa e questionadora, para dimensionar com exatidão os esforços e as energias gastas em tantas administrações.
Primeiro, porque trata-se de um caso raro de continuidade administrava. Ora, sem incursionar pelo mérito, os novos governadores que se sucederam mantiveram a sua prioridade acima de qualquer outra, mas, comparado a outros modelos e vícios administrativos, foi menos ruidoso, destacou Osvaldo, justo aquelas obras que são abandonadas, na maioria das vezes, desaparecem sem alguma nota de utilidade e usufruto, mas quando se tem uma obra desse vulto, após sua inauguração, lamenta o autor desse livro que nada se divulga sobre seu funcionamento, nem se sabe sobre seu retorno financeiro. Nada se controla do ponto de vista da sociedade, nem se avalia tecnicamente, porque ninguém presta contas ou mede os seus resultados, certamente, imersos em outras urgências.
Esses fenômenos de baralhar propostas mais urgentes com as que podem ser discutidas com mais tempo, faz sentido com globalização que na Europa já entra em novo estágio de vigilância e controle digital. O governante, não tendo outra fonte senão o poder financeiro (superposto ao poder político), coloca em risco o equilíbrio entre as oportunidades econômicas, a sociedade civil e a liberdade política, o que decerto constituiu outra fuga do gênio de Aladim.
Nesse item específico de não prestar contas, Osvaldo narra duas passagens interessantes: uma, em 1990, quando o deputado Eudoro Santana apresentou um projeto de lei que obrigava o governador do estado a prestar contas. Nada mais normal e previsível. A Assembleia Legislativa aprovou a proposta, em seguida vetada pelo governador Ciro Gomes. O mesmo sucedendo com seu irmão, quando posteriormente veio ao governo do estado, assim explicado: o então governador Lucio Alcântara publicava anualmente os balanços contábeis de sua administração, prestando contas com o povo cearense, mas essa boa prática foi abolida pelo governador Cid Gomes que não levou à frente esse ato de eficiência e transparência.
Ao continuarmos com a leitura, entre muitas “riquezas que escaparam entre nossos dedos”, como se fosse um “atraso planejado” (subtítulos de dois capítulos dessa obra) remonta o autor que depois do declínio da avicultura, e tantas outras linhas de oportunidades, o que realmente aconteceu com o nosso algodão — um produto de boa qualidade e de fibra longa que despertava enorme preferência, o que movimentou grandes riquezas e serviços, e deveria ser firmado como um importante commoditie já que, com toda expertise, se plantavam no sertão central o chamado “ouro branco” há séculos. (E havia uma cadeia de oportunidades industriais a partir do algodão. Ou do couro. Ou do pescado. Ou do caju, coisas que a natureza deu).
Lamentavelmente, o ministro Delfim Neto proibiu as exportações desses produtos aos estrangeiros, impedindo que os cearenses fizessem crescimento e desenvolvimento naquela quadra decisiva, sob a alegação de que estava protegendo a indústria nacional, quando na verdade estava protegendo São Paulo (que, à época, estabelecia o mercado, arbitrando preços, condições e prazos) em uma guerra em que figurava sempre como o único vencedor.
Nós, como perdedores. E a força política do Ceará? O que fez?
Quando Osvaldo Araújo comenta que o Ceará concentra um número desproporcional de bilionários (versus PIB ou versus população) em descompasso com a grande maioria constituída de pobres e miseráveis, revela em outro capitulo – “para que serve um bilionário?”– que um amigo bem informado sobre finanças assegurou que o Ceara tem doze pessoas com mais de um bilhão de dólares (e outro tanto com bilhões de reais). Ele parabeniza os empresários que chegaram lá, poucos conseguem, poucos conseguirão, mas mantém a pergunta. O problema é que bilionários param de investir em produção, e para de gerar empregos, tributos e inovação. A pergunta cabe.
Na Internet, se alguém perguntar para que servem esses espertos e vorazes acumuladores de riqueza, a resposta viria, na lata, como eles mesmos dizem, no sentido de que tão endinheirados só buscam “oportunidades especiais”, especulações, monopólios. Outros mais cáusticos e pessimistas defenderiam que eles só são uteis para concentrar riquezas, gerar desigualdades e poluir o planeta.
Em grande parte são pessoas inovadoras que mudaram a maneira como vivemos. Muito bem, parabéns. Mas a questão não é essa. Repetimos a mesma pergunta. Parece que a conclusão mais óbvia é a de que eles podem não servir para nada novo. Está na índole do capitalista a concorrência em que batem vitoriosamente e a falta de solidariedade.
O fato é que todos, em vista dessa incômoda indagação, se fecham em círculos, e tudo volta à mesma premissa anterior, como fez o rapper bilionário Jay Z: “não posso ajudar os pobres se eu for um deles”. Mas o hilário em tudo isso é que uma terra pobre como o Ceará, como observou Osvaldo Araújo, precisa perguntar para que serve um bilionário.