Artigo do Henrique Silvestre: “Respeitem Yoyô”

Por Henrique Silvestre, jornalista:

Há exatos 110 anos chegava a Fortaleza, puxado por retirantes da seca braba imortalizada por Rachel de Queiroz no seu mais famoso romance, Yoyô (grafia original da época). Dadas as dificuldades naturais naqueles tempos bicudos, o caprino acabou vendido a um empresário de muitas posses, representante de uma multinacional inglesa por estas bandas. Negócio fechado debaixo de veemente protesto dos dois meninos da família desafortunada. O bode, afinal, era de casa. A mulher nem sequer tinha o quê dizer, sempre agarrada a um rosário de contas, e a rogar a São José para que as chuvas voltassem logo.

O bicho era sabido, como se dizia à época. E olha que sabido é muito mais do que inteligente, tem algo de astúcia. Tanto que, em vez de churrasco ou cozido, virou mascote da empresa. Ganhou o posto de ajudante de guarda-livros, forma encontrada pelos operários de encher a paciência do “Alcides-sem-Paciência”, o
afobado contador da firma.

E vivia solto na provinciana Fortaleza de 1915. Ia da Praia de Iracema ao Centro, e voltava com a desenvoltura de um nativo da capital. Falam até que tomava uns goles de cachaça nas bodegas mais populares. Não mexia com ninguém, ninguém mexia com ele. Pelo contrário, não eram poucos os que o cumprimentavam.

E os anos foram passando. A seca trazendo mais e mais retirantes para o litoral. Fortaleza inchando. Yoyô ficando cada vez mais popular. Curioso que, mesmo sendo aqueles tempos famélicos, não ocorreu a ninguém fazer um ensopado do bode. Não podia ver uma roda, entrava com seu cheiro característico. Ninguém o molestava.
Na Praça do Ferreira, coração e alma da cidade, corria o boato de que as ajudas mandadas pelo governo federal para acudir os atingidos pelo flagelo – além de fome, havia doenças – eram desviadas pelos senhores fraque e cartola. A situação se agravava a olhos vistos.

Criaram-se acampamentos nos arredores da cidade para evitar que a afrancesada cidade fosse ocupada por uma leva de esquálidos pedindo “uma esmola, que Deus lhe dará mais”. Eram os campos de concentração ou campos de flagelados como preferiam alguns, inaugurando a tucanagem.

O roubo era certo. A farinha, desviada e vendida em armazéns locais. Os recursos financeiros caiam nas algibeiras dos de sempre. No firmamento, nada de nuvens. Muitos, iludidos por promessas de um eldorado onde não falta água nem serviços, rumaram para Amazônia. Iam para nunca mais. Já era, então 1922. Tempo de eleições.

Para surpresa de nenhum dos habitués da Praça Ferreira, abertas as urnas, lá estava Yoyô entre os mais votados. Detalhe: o voto era em cédula de papel, na qual se escrevia o nome do candidato preferido. Consta que o caprino desdenhou do sucesso eleitoral e preferiu manter sua rotina entre a Praia de Iracema e uma cachacinha no Centro.

As aventuras do bicho duraram até 1931, quando foi achado morto – provavelmente por causas naturais – nas imediações da praça que tanto lhe deu fama e popularidade. O empresário que havia adquirido o pai-de-chiqueiro mandou empalhá-lo. Afinal Yoyô virara uma entidade, eleito para câmera e tudo. Merecia respeito. Anos depois, doou a peça ao acervo do Museu do Ceará.

Agora estamos em 2025. O cenário é novamente a Praça do Ferreira. Os tempos são outros, a Fortaleza é provinciana de outras formas. Mas o logradouro ainda é o palco para os variados assuntos. Vai de Felca à situação dos clubes cearenses no Brasileirão. Do morango do amor ao tarifaço do presidente dos Estado Unidos, Donald Trump. Tem especialista de todo quilate.

As emoções afloram. As discussões são ouvidas do outro lado da praça. Quem não conhece jura que há uma briga em curso. Uns culpam Bolsonaro e seus filhos. Outros, o governo. Nunca há consenso. E as vaias são mais comuns do que se possa pensar (já houve até vaia de dedo, mas essa é outra história).

Era, então, uma quinta-feira. Haviam sido divulgados áudios obtidos pela justiça a partir da apreensão do aparelho celular de homem que se diz religioso, embora tenha se notabilizado recentemente por passar mais tempo em cima de palanques do que sobre púlpitos. Estavam lá, passando de zap em zap (se tem uma coisa que aquela gente aprendeu ligeiro foi a usar tecnologia) impropérios dignos de jogo de várzea. Pastor com ex-presidente, pai com filho, filho com pai.

Esculhambação! Gritava a plenos pulmões um sujeito num paletó amarrotado, sobre uma camisa de punhos e gola puídos. ES CU LHAM BA ÇÃO, repetia de forma escandida. E, num gesto extremado, tirou do bolso a foto em que estavam lado a lado Bolsonaro e Trump, com as cores dos dois países ao fundo de cada e imagem. Partiu em pedaços minúsculos e jogou para o alto.

“ES CU LHAM BA ÇÃO!”, berrou popular na Praça do Ferreira, picotando foto

O vento, que é marca da praça, fez o resto, espalhando o papel picado pra tudo quanto é lado. É alguém gritou, quebrando o instante de perplexidade advindo do gesto inesperado “Rasgaram a foto do bode-louro vereador lá dos Estados Unidos”. O sujeito do paletó mal-amanhado respondeu em cima: “Respeite Yoyô, que ele era gente de bem!”

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