Por Hédio Silva Jr., advogado, mestre em Direito Processual Penal e doutor em Direito Constitucional (PUC-SP) e coordenador-executivo do Idafro, fundador do JusRacial, e Ana Luíza Teixeira Nazário, advogada, mestre em Direitos Fundamentais e Justiça (UFBA) e especialista em Ciências Penais (PUC-RS), no site Consultor Jurídico:
À vista da crescente discussão acerca da inserção de conteúdos religiosos no âmbito do ensino público, impõe-se analisar as normas constitucionais e infraconstitucionais que tutelam a liberdade de crença, a laicidade do Estado e a proteção integral de crianças e adolescentes. Não se trata apenas de discutir a possibilidade de acesso a obras sagradas, mas de aferir se a veiculação acrítica de preceitos doutrinários se enquadra ao escopo pedagógico ou configura forma de coerção psíquica e maus-tratos.
Nesse sentido, impor a adoção de conteúdo religioso específico com viés normativo — isto é, desvinculado de uma abordagem histórico-cultural e crítica — pode configurar violência simbólica e coação psíquica. A coerção religiosa se verifica quando o texto sagrado deixa de ser objeto de estudo analítico e passa a ser apresentado como norma de conduta a ser obedecida.
Quando professores recitam passagens como “Matem todos os meninos pequenos. Matem também todas as mulheres que se deitaram com homem, mas, entre as crianças pequenas, poupem para vocês as meninas que nunca se deitaram com homem” (Números 31:17-18) ou “Fujam da imoralidade sexual” (1 Coríntios 6:18) sem contextualização crítica, há o risco de legitimação de violência e discriminação (sobretudo de gênero e orientação sexual), ferindo o princípio do melhor interesse da criança e violando o dever de neutralidade do Estado.
A leitura de trechos como “Permaneçam as mulheres em silêncio nas igrejas” (1 Coríntios 14:34) ou “Não permito que a mulher ensine, nem que exerça autoridade sobre o homem” (1 Timóteo 2:12) agrava o constrangimento de alunas, enquanto o silêncio sobre liberdades individuais contraria fronteiras éticas e pedagógicas.
Além de ferir o princípio da neutralidade religiosa (CF, artigo 19, I) e a (CF, artigo 5º, VI), a imposição de doutrina religiosa na sala de aula invade competência privativa da família, resguardada no artigo 208, § 1º, da Constituição, ao reconhecer como inviolável o direito dos pais de orientar a formação espiritual de seus filhos.
Ao suprimir ou tolher essa prerrogativa, a escola extrapola seu papel pedagógico e adentra o espaço da autonomia familiar, afrontando também tratados internacionais ratificados pelo Brasil, como a Convenção sobre os Direitos da Criança (ONU, 1989), que assegura o respeito à liberdade de pensamento, consciência e religião no âmbito familiar e comunitário (artigos 14 e 30).
A Constituição Federal de 1988 consagra, no artigo 227, caput, o princípio da proteção integral e absoluta da criança e do adolescente — também conhecido como o princípio do superior interesse da criança — determinando que:
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e ao protagonismo, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
No plano infraconstitucional, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990) tipifica como crime a conduta de “submeter criança ou adolescente sob sua autoridade ou guarda a vexame ou constrangimento” (artigo 232, caput), cuja pena comina detenção de seis meses a dois anos, além de multa. No mesmo diploma, o artigo 4º reforça que é dever de toda a sociedade assegurar os direitos da criança e do adolescente, e o artigo 5º preconiza que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.
No âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, embora a corte tenha reconhecido como constitucional a presença de símbolos religiosos, como crucifixos em repartições públicas (ARE 1.249.095/SP, Tema 1.086, 2024), em 2021, o STF, por unanimidade, julgou inconstitucional as leis dos estados do Amazonas e de Mato Grosso do Sul que tratavam da obrigatoriedade de manutenção de exemplares da Bíblia Sagrada em escolas e bibliotecas públicas (ADI 5.258/AM e ADI 5.256/MS), entendendo que “a imposição normativa de compra de apenas um desses livros tidos como sagrados” privilegia determinada religião e desrespeita a imparcialidade estatal.
Imposição normativa é violência contra pessoas em formação
Outrossim, impõe–se adentrar no instituto da classificação indicativa, sistema normativo instituído e operacionalizado pelo Ministério da Justiça [1], cujo escopo é fornecer aos responsáveis legais orientação quanto à faixa etária recomendada para a fruição de obras audiovisuais, de modo a resguardar crianças e adolescentes da exposição a conteúdos nocivos ou incompatíveis com seu grau de maturidade.
Consoante o Manual de Orientação do referido órgão, devem ser explicitamente vedados nos materiais dirigidos ao público infantil, notadamente menores de 12 anos, quaisquer elementos de violência simbólica, constrangimento ou humilhação de minorias. Nesse contexto, a adoção da Bíblia como recurso didático, desprovido de mediação crítica e plural, viola também os critérios explicitamente previstos no Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) e no Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE), os quais coíbem a doutrinação religiosa e impõem o respeito à diversidade cultural e religiosa dos educandos. Por oportuno, ressalta-se que tal imposição recai sobre sujeitos em formação, cuja plena faculdade de discernimento e desenvolvimento só se consolida a partir da adoção de práticas pedagógicas críticas, inclusivas e respeitosas das convicções familiares.
A imposição normativa de conteúdos religiosos no ambiente escolar, desprovida de mediação crítica e plural, não apenas compromete a laicidade do Estado e a liberdade religiosa, mas também representa forma de violência contra indivíduos em formação, ferindo a dignidade e os direitos fundamentais da criança e do adolescente. Tal prática, ao desconsiderar a autonomia das famílias na orientação espiritual dos filhos, desvirtua a função pedagógica da escola pública e contraria os fundamentos do Estado Democrático de Direito.
Preservar a diversidade de crenças e garantir um espaço educacional inclusivo e respeitoso não é apenas uma exigência legal, mas sim um imperativo constitucional, ético e civilizatório.
[1] MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Classificação Indicativa – Legislação. Disponível aqui