Do site Observatório da Censura à Arte:
Entre as ondas de censura que têm assolado o Brasil durante os últimos anos, as bibliotecas comunitárias se apresentam enquanto um porto seguro para a liberdade de leitura e acesso ao livro. Criadas e mantidas por comunidades, as iniciativas costumam atuar de forma autônoma e, muitas vezes, sem auxílio ou recursos suficientes.
“A gente entende que está ali fazendo um favor”, defende Francine Conde, bibliotecária que integra a Marginal, biblioteca comunitária localizada na Ilha da Pintada, em Porto Alegre (RS). A fala de Francine diz respeito à relação entre a iniciativa e o poder institucional. Há muito tempo, pedem para a prefeitura um espaço desocupado na região: “Se eles nos cedessem o espaço, era um favor que a gente estaria fazendo, de se fazer cumprir a questão de cultura no território. A gente recebe negativo em todas as vezes, por motivos absurdos e muita má vontade”.
Os temas trabalhados pela Biblioteca Marginal são aqueles que têm sido alvo constante dos censores: “A gente trabalha a literatura afirmativa, negra, indígena, que trata questões de gênero, raça e etnia. Por entender que nessa literatura muita gente se enxerga. A gente consegue acessar muito mais o jovem com uma realidade próxima a ele”, explica Francine.
Diferente do que ocorreu com diversas bibliotecas escolares nos últimos anos, a biblioteca comunitária da Ilha da Pintada nunca passou por algo como censura. Francine argumenta que esses espaços “são criados pela comunidade, para a comunidade, pensando as demandas da comunidade” e acrescenta: “A gestão é feita por nós e para nós também. Então a gente consegue dialogar, nosso trabalho é muito mais autônomo do que as outras tipologias. Apesar das dificuldades de se manter uma biblioteca comunitária, acho que é um espaço de enfrentamento a essas questões.”
Com as inundações que assolaram o estado do Rio Grande do Sul e deixaram a região das ilhas na capital gaúcha completamente embaixo d’água, a Biblioteca Marginal entregou o espaço que com muito custo alugava para armazenar seu acervo. Com o auxílio de editais, o grupo pretende adquirir materiais suficientes para atividades a serem realizadas em escolas na comunidade.
A leitura mediada e o sujeito pensante
Mediadora de leitura e professora na área de letras no Instituto Federal do Rio Grande do Sul, Ana Paula Cecato lê os livros trabalhados na disciplina junto aos alunos do ensino médio, na sala de aula. Um dos livros que vem sendo trabalhado na turma é O Avesso da Pele, livro de Jeferson Tenório que foi alvo de censura em 2024. Uma das passagens da obra utilizada para argumentar sua proibição envolve uma cena de masturbação de uma das personagens.
“A gente fez a leitura em voz alta. Depois que essa passagem foi lida eu trouxe pra eles que essa era uma das passagens sendo alvo de censura, e a gente conversou”, relata Ana Paula, que questionou aos estudantes: “Isso é algo alheio a vida de vocês? Isso é algo que alguém aqui se sente incomodado? Será que essa passagem é uma passagem que vocês deveriam ser privados de ler?”. A resposta foi unânime: “não”. A professora acrescenta: “foi muito interessante porque eles respeitaram muito o texto do Tenório. Eles entenderam que aquilo tava fazendo parte de uma narrativa inteira. Que fazia parte”.
O livro, que faz parte do Plano Nacional dos Livros Didáticos (PNLD) – do qual as escolas têm liberdade de escolher quais livros vão trabalhar dentre os oferecidos -, agora integra também a lista de leituras obrigatórias para o vestibular da UFRGS. “A questão de ser uma leitura obrigatória da UFRGS, traz uma chancela importante. Nas últimas das últimas tu diz que é uma leitura obrigatória. Em última instância, é esse o recurso”, comenta a professora sobre a possibilidade de ter que justificar a leitura do livro em sala de aula.
Ana Paula avalia que a mediação entre os livros e os jovens deve ser feita de forma consciente. “A própria abordagem dos temas sensíveis para as crianças e para os jovens têm que ter um fino trato, elas precisam ser tematizadas, porque a literatura trata da vida, nas suas potencialidades, nas suas fragilidades, nos seus temas mais sensíveis, então a inteligência e sensibilidade desses leitores precisa ser respeitada.”
A educadora conta, por exemplo, que livros como O Menino Marrom, de Ziraldo, e A Moça Bonita do Laço de Fita, de Ana Maia Machado, trouxeram a questão da racialidade, na época em que foram lançados, mas acabaram ficando datados. “Hoje a gente tem mais produções contemporâneas que tematizam isso de uma maneira muito mais positivada”.
A censura nas instituições
Natália (nome fictício), bibliotecária que trabalha em uma escola particular e não quis se identificar, relata que a censura aos livros costuma ocorrer mais em bibliotecas escolares. Na biblioteca da escola onde ela trabalha, existe uma política que classifica livros com abordagens LGBTQIA+ com um rótulo de atenção, que só permite a retirada pelo aluno com autorização dos pais. Muitos desses livros tiveram a aquisição solicitada pelos próprios alunos, e, ainda que não tenham cenas inadequadas para a faixa etária, são classificados de tal forma. “Eles mal se beijam”, contestou uma aluna sobre um desses livros. Ela também conta que alguns pais reclamam até mesmo quando meninos pegam livros com uma capa cor-de-rosa emprestados, por exemplo.
A campanha “Bibliotecas que não se calam” da Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários (FEBAB) traz relatos similares: “A psicóloga da escola foi à biblioteca quando eu não estava e fez a auxiliar imprimir a lista de todos alunos e funcionários que tinham retirado o livro ‘Persépolis’ (foi leitura obrigatória em 2017) e disse que iam fazer um trabalho com estagiários. A funcionária não me contou num primeiro momento. Soube quando a direção disse que tinha retirado o livro e que eu devia comunicar que não existia o livro. Questionei a direção e um pai questionou o conteúdo de um beijo entre homens em uma ilustração e que então este livro não fazia mais parte do nosso acervo.”
A iniciativa da FEBAB surgiu em 2020 e vem sendo revisitada em 2024, dois anos eleitorais. A fim de disputar o espaço midiático, agentes políticos têm atacado espaços de leitura e obras literárias. “Alguns pretensos políticos utilizam disso como argumento para eleitorado. Dizem que vão proteger a família evitando que as pessoas tenham acesso a determinado tipo de obra”, argumenta Jorge do Prado, presidente da FEBAB.
Em abril de 2024, um vídeo no qual a prefeita de Canoinhas (SC) atacava a Mundoteca do município viralizou nas redes sociais. No vídeo, baseado em desinformação, ela comenta que a biblioteca é uma iniciativa do PT e que veiculava livros envolvendo sexualidade, o que, segundo a prefeita, contrariam os valores pelos quais o município preza.
O projeto Mundoteca, até então presente em mais dois municípios em Santa Catarina e cinco cidades em outros estados, é um programa da empresa FGM Produções, e não do governo federal, financiado com recursos da Lei Rouanet. Além disso, os livros denunciados jamais foram indicados ou emprestados para crianças, de acordo com a nota da empresa divulgada na época, e eram voltados para os adultos que frequentavam o espaço.
As estações do Mundoteca, além de prover livros a serem emprestados para a população, organizavam também oficinas, saraus, sessões de cinema e outras variadas atividades. Após o ataque ocorrido em abril e sua repercussão, o trabalho de democratização do livro feito pelo projeto foi interrompido às custas da desinformação promovida pela política. As redes sociais do programa não foram mais atualizadas. A FGM Produções, responsável pelo projeto, não respondeu às tentativas de entrevista feitas pelo Nonada.
Jorge do Prado argumenta que “é muito mais comum a interrupção de um livro vindo de pessoas externas à biblioteca”, mas ressalta que o movimento pode vir inclusive dos próprios bibliotecários: “ela tira [o livro] com a justificativa que ela não tem nenhuma ação, nenhuma leitura conjunta deste tipo de obra que ela possa conduzir. A justificativa que a pessoa diz é que ela não tem conhecimento sobre isso, não se sente confortável sobre isso. Às vezes ela até pode dizer isso de boa fé, mas ela tá limitando o acesso.” A FEBAB está coletando novos relatos de cerceamento e censura através deste formulário.
Para a professora Ana Paula Cecato, o diálogo é a melhor solução. “A gente precisa, urgentemente, voltar a conversar. Porque o que se estabelece muito hoje no processo educacional está totalmente relegado à escola. Algumas noções de convivência, de tolerância, de própria empatia, algumas crianças não trazem isso de casa e acaba que a escola cumpre toda essa função educativa. Se o cenário é esse, então vamos levar a literatura como uma produção cultural que possa falar dessas coisas, que possa trazer esses temas. Que possa educar para uma consciência de que existem outras pessoas com outras vivências, com outros atravessamentos”.
Autonomia e falta de recursos nas bibliotecas comunitárias
A Releitura, rede de bibliotecas comunitárias em Pernambuco (PE), relata a ausência de casos de censura relacionados a livros trabalhados por suas bibliotecas. No entanto, compartilha um caso de intolerância religiosa direcionada a um terreiro de umbanda, onde está localizada uma delas, a Cabloco Girassol. “Cada uma vai ter algo específico pelo fato de estar conectada ao território. Essa biblioteca que está no terreiro tem como prática fazer mediações de leitura afro centradas”, pontua Tarcísio Camêlo, educomunicador da Releitura.
O Educomunicador justifica a falta de episódios de censura argumentando: “Como as bibliotecas comunitárias são independentes e os próprios mediadores de leitura, que fazem a curadoria dos livros, estão diretamente interligados com seus territórios, suas raízes na comunidade, não houve nenhum tipo de censura relacionado a essa questão do livro nas bibliotecas.”
A independência das bibliotecas comunitárias é de suma importância segundo Tarcísio. A preocupação é de que, conforme esses espaços busquem participar do orçamento público, essa característica tão fundamental passe a ser censurada. O educomunicador compartilha uma atividade desenvolvida pela rede sobre vivências LGBTQIA+, mediada por um jovem trans, e questiona: “E aí se entrar dentro do escopo, da estrutura da prefeitura, como que fica? Pode se perder isso.”