Opinião: “Dentes de crocodilo”

Artigo de livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, advogado e parecerista em Brasília – o texto foi publicado originalmente no site Consultor Jurídico:

A escolha do título de um livro é um ato de fé. O autor acredita que o título revela algo do livro, que aponta alguma mensagem que propõe algum enigma. Sejamos práticos, há também questões mercadológicas. Quanto mais variáveis as alternativas de títulos, tanto melhor, porque inegavelmente mais exuberante a narrativa.

“Dentes de crocodilo” é exemplo dessas múltiplas outras possibilidades, que devem ter atormentado o autor, Maurício Torres Assumpção. Deve ter sido uma escolha difícil. Ao virar a última página o leitor pode apostar que o livro também cairia bem como “Os choros perdidos de Villa-Lobos”, o que lhe realçaria um certo ar de romance histórico. E talvez chamasse mais a atenção nos batéis das livrarias que ainda há no mundo.

O autor construiu uma narrativa que se desdobra em vários planos de tempo. Aproximou a Paris visitada por Villa-Lobos (e Maurício bem conhece a história do Brasil nas ruas de Paris, tema de um de seus livros), com os cara pintadas do tempo do Collor, e amarrou tudo com um tempo antigo e esquecido da pacata vida suburbana do Rio de Janeiro; a Penha e outros bairros ainda não eram territórios milicianos. Nesse ponto, é um livro também saudosista, que só poderia ser escrito por quem viveu em um Rio de Janeiro que não existe mais. O leitor que tente hoje visitar a Igreja da Penha.

“Dentes de crocodilo” é um romance contemporâneo que sutilmente retoma argumentos permanentes da tradição literária europeia (e por extensão, desde há muito tempo, da tradição literária brasileira, pese os chiliques da patota do Mário de Andrade). Há também nesse livro uma ambiciosa mistura de engano sanguíneo de “Os Maias” (Eça) ou mesmo do teatro grego. Nesse último caso, há um fundo trágico que desafia nossos tabus mais profundos. Pode ser um livro freudiano de análise da conduta humana, se o leitor assim quiser.

Nas entrelinhas, o eterno combate entre o livre-arbítrio e o determinismo. Maurício nos pergunta se, de fato, somos os donos de nosso destino. O quadrilátero Wagner/Lorena/Lafa/Camille é o pano de fundo de uma trama desafiadora, ainda que o problema se torne mais visível apenas a partir da metade do livro. O autor mantém aceso o charme de uma técnica que mais parece um quebra-cabeças que derruba o leitor quando o quadro final é apresentado. Essa técnica o autor já utilizara com vigor em “Cafeína”, seu festejado romance.

“Dentes de crocodilo” é também a narrativa de uma amizade. Wagner e Nando transcendem da zona norte do Rio de Janeiro para o entorno de emigrados brasileiros em Paris. É uma história que pode ter acontecido com muita gente que deixou o País. Quanto talento foi perdido. Jovens que foram empurrados pela crise financeira, moral e política que nos abateu, e que não quer nos largar. A deterioração dos centros de nossas cidades é também a triste prova estética dessa decadência. O problema é que a crise é tão profunda e imorredoura, que nem mais talentos parece haver.

O narrador (Nando) resgata a história do amigo (Wagner), um nadador ruivo, filho de um compenetrado dono de oficina mecânica, que sonhava que o filho fosse engenheiro. Wagner negou o sonho ao Pai. Quis enfrentar o próprio destino, como fez o avô, que deixara a Alemanha weimariana. E foi até o fim, sem esperar perdão do Pai. Não se realizou a enigmática metáfora bíblica do filho-pródigo.

Mote
O mote da história é a busca de partituras perdidas de Villa-Lobos. O personagem central é um estudioso do grande músico carioca. O autor revisita as andanças de Villa-Lobos em Paris. O compositor era patrocinado por Arnaldo Guinle, um mecenas que acreditava no talento de Villa-Lobos. Desfilam no livro as esposas do músico, Lucília (a pianista) e Arminda, uma ex-aluna, de algum modo contida na estrutura de uma das personagens centrais do livro. O leitor descobrirá quem é.

O vetor psicológico do livro é a responsabilidade que projetamos nas pessoas em favor de quem fizemos nossas escolhas. Dificilmente se perdoa quem tomamos como reféns de nossas opções. Seguimos nossos destinos por nós mesmos, e não por alguém, ainda que teimemos em justificar nossos erros (e não nossos acertos) em quem depositamos nossa confiança. O desfecho do livro é uma constatação cruel e realista desse dilema existencial.

“Dentes de crocodilo” é de algum modo um romance histórico que tem história e que tem romance. É uma crônica musical que toca música verdadeira e que tem a conversa gostosa da crônica, a exemplo da ponta que Elsie Houston protagoniza na narrativa. É um estudo sobre brasileiros com o olhar privilegiado de quem mora fora do Brasil, mas que entende muito do Brasil.

O livro é um desafio para a crítica genética, porque as várias fontes utilizadas, bem como a forma como ordenadas, substancializam a densidade narrativa e desafiam aqueles que amamos entender por que os grandes livros são escritos. “Dentes de crocodilo” nos revela que temos um grande escritor brasileiro que vive no exterior. Intriga deduzir ou intuir o quanto do professor Wagner Krause ou do amigo Nando seria a projeção idílica do próprio autor.

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