Por Raúl Gustavo Ferreyra, (foto) professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, doutor e pós-doutor em Direito:
Na Argentina, a maioria dos cidadãos elegeu Javier Milei para o exercício da presidência da República para o período de 10 de dezembro de 2023 a 10 de dezembro de 2027. A Argentina, como todos os países sul-americanos, tem uma Constituição hiperpresidencialista.
O presidente da República deve ser controlado pelo Congresso. A propósito a Constituição argentina determina, em seu artigo 53, que a Câmara dos deputados exerce o direito de acusar perante o Senado o presidente, o vice-presidente, o chefe do gabinete de ministros, os ministros de Estado e os membros da Corte Suprema, naquelas causas onde se apuram suas responsabilidades por mau desempenho, por delito no exercício de suas funções ou por crimes comuns.
As prescrições normativas são completadas com as atribuições do Senado. Assim, da combinação dos artigos 59 e 60 da Constituição Argentina resulta que ao Senado corresponde julgar (em sessão pública) os acusados pela Câmara dos Deputados. Para a destituição do agente público, requer-se uma maioria de dois terços dos membros presentes e a consequente declaração de culpa. Nesse caso, o julgamento do Senado terá por efeito o de destituir o acusado do cargo e, ainda, declarar-lhe incapaz de ocupar qualquer cargo público, seja ele honorífico, em comissão ou remunerado. Além disso, a parte condenada também ficará sujeita à acusação, julgamento e sanções eventualmente previstas em lei perante os tribunais ordinários.
O julgamento político (com a destituição cuja procedência implica) é sanção de igual natureza e com profundas consequências jurídicas e institucionais.
Diferentemente da República Federativa do Brasil, onde prosperaram destituições de presidentes, na Argentina, em toda sua história constitucional que vai desde 1853 a nossos dias, nunca o mandatário do Poder Executivo federal foi destituído em julgamento político. Uma das chaves para viabilizar a acusação é o “mau desempenho”.
Esse “mau desempenho” exigido na Constituição para destituir um presidente pela via do julgamento político deve ser uma das piores transgressões que um funcionário público, por ação ou omissão, possa incorrer. Fora das hipóteses das causas de responsabilidade contempladas no artigo 53 (julgamento político), a Constituição autoriza as “comissões de inquérito” no Congresso, que também se voltarão para determinar os parâmetros da atuação presidencial, ainda que sem a sanção da destituição do cargo. Tanto o “julgamento político” como as “comissões de inquérito” são modalidades de controle político, uma função capital do “Congresso da República”.
O atual presidente, desde o dia de sua posse, ocupou-se de macular o Congresso e suas tarefas representativas, configuradoras, constituintes e de controle. A penosa e cruel ideia do presidente Milei, segundo sua própria tese vez ou outra expressas em suas falas — palestras ou entrevistas —, é a de “destruir o Estado”, cujo fundamento é a Constituição. Uma vez destruído o Estado, não subsistiriam suportes jurídicos; seria a anarquia global.
O artigo 27 da Constituição Argentina determina, desde 1853, que o governo federal se encontra obrigado a fortalecer as relações de paz e de comércio com as potências externas, por meio de tratados que estejam em conformidade com os princípios de direito público por aquela estabelecidos.
A pessoa que foi eleita pela maioria como “chefe supremo da Nação” decidiu, na sexta-feira, dia 14 de fevereiro de 2025, promover ações que em definitivo não se enquadram no artigo 27; assim, sem base jurídica, estimulou atividades financeiras, negociais e econômicas que margeiam a antijuridicidade (ou mesmo as transpassariam). Disse o presidente num tuíte: “A Argentina Liberal cresce! Este projeto privado se dedicará a incentivar o crescimento da economia argentina, financiando pequenas empresas e empreendimentos argentinos. O mundo quer investir na Argentina. $LIBRA”. Continuando, a mesma publicação indicou o link da web (“Vivalalibertadproyect.com”) no qual se poderia acessar a tais negócios que são desprovidos de regulação jurídica centralizada, soberana e racional. O presidente argentino impulsionou negócios privados sobre criptomoedas. O tuíte é a prova das provas.
A conduta presidencial tampouco coaduna-se com o artigo 36 da Constituição argentina (na redação estabelecida a partir da Reforma Constitucional de 1994), com o qual foi conferido status constitucional a uma “lei de ética pública”. Em outras palavras: a ética pública integra a linguagem constitucional e estabelece os limites do estado de coisas constitucional. Essa “lei de ética pública” prevista pela Constituição foi configurada pelo Congresso, entrando em vigor há pouco tempo. Esse instrumento legal determina que é incompatível com a função pública realizar atos que impliquem conflitos de interesses ou aproveitamentos privados. Por exemplo, a promoção e a possível participação em atos relacionados com a criptomoeda (ou memecoin) nominada “$Libra”, feitos por Milei, seriam abrangidos pela aludida proibição, tal como se depreende da conduta insinuada no tuíte reproduzido, cuja autoria ele mesmo assumiu.
“Mau desempenho”, em termos constitucionais, é contrariar os princípios de direito público autorizados pela Lei Suprema. Esses princípios constitucionais são, por exemplo, a legalidade, a razoabilidade, a separação de poderes, o fomento às relações exteriores, o respeito à ética na função pública e os negócios presididos pela boa-fé. O presidente, ao se referir a uma operação, como a citada em seu tuíte, parece não ter atuado segundo esses princípios.
O mau desempenho de uma função pública é algo que danifica a tessitura jurídica na qual aquela se apoia. Com palavras mais diretas: é realizar atos absolutamente contrários às regras que fundamentam a própria autoridade presidencial. Usar a autoridade executiva para não cumprir a Constituição. Sem autorização jurídica, a única fonte habilitante é a própria vontade despótica, anárquica e contrária ao Direito. Não há opções: ou governo dos homens ou governo da lei; ou governo da irracionalidade ou a razão guia a vontade.
Atuação de Milei deve ser investigada
O presidente deveria conhecer todos os aspectos do negócio promovido. O presidente é um funcionário público, não um empresário privado. Como líder dos processos públicos, lhe é absolutamente proibido, enquanto durar o período de sua gestão executiva, induzir, sugerir, apresentar, recomendar ou utilizar seu cargo para fazer negócios privados. A presidência deve ser exercida à luz do dia.
O presidente, tal como todo habitante da Argentina, pode expressar com liberdade seus pensamentos. Pode agir, falar e decidir; seu campo de liberdade é amplíssimo — certamente, não tem o presidente a liberdade de se recusar a cumprir a Lei Fundamental e as obrigações que ela impõe para um desenvolvimento inequívoco da função executiva.
Não há autoridade sem limites, menos ainda acima da lei. As instituições políticas descritas na lei são basilares para a comunidade. Sem a autoridade suprema da lei e suas instituições políticas em pleno funcionamento eficaz somente corresponderia esperar uma comunidade sem regras.
A atuação do presidente da Argentina deve ser investigada com celeridade e profundidade, dado que há indícios e evidências de que poderia ter incorrido num “desempenho” desautorizado pela Constituição, em prejuízo da Argentina e de seus cidadãos. Há deputados que estão a requerer o julgamento político, ao passo que outros pedem a instauração de comissões de inquérito; e tanto na Argentina como fora de seu território há pessoas que fizeram denúncias pela suposta existência de fraudes e outras condutas penalmente tipificadas nos respectivos ordenamentos jurídicos.