Artigo do professor Filomeno Moraes, originalmente publicado no site Segunda Opinião. O autor é Cientista Político. Doutor em Direito (USP). Livre-Docente em Ciência Política (UECE). Estágio pós-doutoral pela Universidade de Valência (Espanha). Publicou os livros “Estado, constituição e instituições políticas: aproximações a propósito da reforma política brasileira” (Belo Horizonte: Arraes Editores, 2021) e “A ‘outra’ Independência a partir do Ceará: apontamentos para a história do nascente constitucionalismo brasileiro” (Fortaleza: Edições UFC, 2022), e o e-book “Crônica do processo político-constitucional brasileiro (2018-2022).” (Fortaleza: Edições Inesp, 2022):
A questão da existência ou da implantação do semipresidencialismo no país, o mais das vezes tratada obliquamente, voltou à carga com entrevista concedida pelo ministro da Fazenda à jornalista Mônica Bergamo (“Folha de São Paulo”, 28/4/2024). Segundo Fernando Haddad, “o Legislativo tem hoje a mesma prerrogativa do Executivo de criar despesas”, pelo que deve também indicar as receitas para fazer frente a elas. Além do mais, considerou que “virou um parlamentarismo que, se der errado, não dissolve o parlamento, e sim a presidência da República”.
De fato, desde o segundo mandato da presidente Dilma Rousseff “com” o deputado Eduardo Cunha na presidência da Câmara dos Deputados, tem-se apontado características do semipresidencialismo no estabelecimento político-constitucional brasileiro. Da feição inicialmente tímida até a desenvoltura com que tais características são hoje vislumbradas, foi um processo em crescendo nas presidências de Michel Temer e Jair Bolsonaro, encontrando-se no momento o ápice no emparedar presente do governo atual. Defenestrada Rousseff, incapaz de estabelecer uma maioria no Legislativo, Temer entregou os anéis e os dedos para não perder o mandato extorquido por meio da selvageria política; Bolsonaro, depois de negaceios atinentes à realidade política, entregou o governo ao Centrão e entregou-se à consecução do projeto – afortunadamente fracassado – de golpear as instituições.
Com o Lula.3, a situação se configura diferente. O presidente atual tem como saldo o êxito, descontados os custos de diversas extrações obscuras e condenáveis, na realização do presidencialismo de coalizão, durante os seus oito de mandatos anteriores. E, na conjuntura, não é infenso à negociação e à barganha com o Congresso Nacional, muito pelo contrário, a sua natureza conciliatória precisa de limites para não conciliar e negociar o que deve ser inconciliável e inegociável.
No entanto, os tempos são outros. Não exclusivamente, mais muito fortemente, entre as misérias do interregno bolsonarista, ficou a herança de o Congresso Nacional ter-se assoberbado de orçamento secreto, emendas a perder de conta, irresponsabilidade orçamentária e relativização de controles, dando azo ao que se pode denominar “semipresidencialismo de usurpação”. Semipresidencialismo que, se forma a despeito da preceituação constitucional e da separação e organização dos poderes estruturada pelo poder constituinte em 1988. Usurpação, pois, do feixe de competências que se atribuiu ao Poder Executivo.
Não se duvida da legitimidade do sistema de governo, sobre se a “boa República” adote o presidencialismo, o parlamentarismo ou alguma construção mista. O estranho é que, sub-repticiamente, comece a se diluir a construção institucional republicana. Formatado no texto constitucional de 1891, com exceção do breve interregno compreendido entre setembro de 1961 e janeiro de 1963, o presidencialismo atravessou toda a quadra republicana, sobrevivendo, inclusive, às Constituintes de 1933/1934, 1946 e 1987/1988.
Por tudo, pode-se responder afirmativamente a pergunta de Juan Linz, no escrito “Presidencialismo ou parlamentarismo: faz alguma diferença?”. Sim, faz diferença, nomeadamente quando a mudança de sistema de governo ocorre por meio de práxis políticas alheias aos princípios contidos no texto constitucional. E quando se perfaz num semiparlamentarismo que, se der errado, não dissolve o parlamento, mas dissolve a presidência da República.
P.S. Que seja perdoada a distração referente aos ritos fúnebres da centena de mortos e ao sofrimento dos sobreviventes, na tragédia climática, e omissiva e comissivamente humana, que castiga a terra gaúcha.