Texto do jornalista Paulo Montoryn, do site The Intercept Brasil, sobre a estranha inversão de opiniões sobre o videomonitoramento das violências que PMs podem cometer:
Sob pressão do Supremo Tribunal Federal, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e seu secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite, finalmente lançaram o novo edital para a compra de câmeras corporais nas fardas dos policiais.
Inicialmente contrários ao uso do equipamento — e a qualquer medida que proteja direitos humanos, como ficou claro nas matanças das operações Verão e Escudo —, Tarcísio e Derrite foram à imprensa empolgados para anunciar a concorrência pública, satisfeitos com a nova diretriz: o acionamento das câmeras agora será remoto.
A retórica oficial alega que as novas câmeras, acionadas remotamente, permitirão maior controle e governança sobre as gravações, já que há falha na captura de imagens devido ao esgotamento da bateria. Mas, segundo especialistas, a narrativa esconde a real intenção. O controle remoto, na verdade, facilita a manipulação das gravações e a ocultação de incidentes críticos.
A empolgação do governador parece ser motivada por dois fatores principais: além da flexibilização do uso das câmeras, é uma oportunidade de parceria com a empresa Condor, recentemente adquirida pelo Grupo Edge, conglomerado de defesa dos Emirados Árabes Unidos que possui fortes ligações com o bolsonarismo.
O Grupo Edge é representado no Brasil por Marcos Degaut, ex-secretário do Ministério da Defesa no governo Bolsonaro, que agora lidera a operação do grupo na América Latina. Já contei no Intercept que, já como CEO do grupo na região, Degaut fechou contrato milionário com a Marinha do Brasil depois de articular o negócio enquanto era servidor.
A Condor, novo braço do Edge, atende aos requisitos do edital de Tarcísio, e surge como uma das favoritas para ser a nova fornecedora do equipamento ao governo de SP.
O plano de Tarcísio implica na aquisição de 12 mil câmeras, que, além de serem acionadas remotamente, gravarão de forma intencional, em vez de contínua, dificultando a investigação de abusos policiais.
Mas não é só aí que o Grupo Edge avança em São Paulo. Paralelamente, o projeto Muralha Paulista, que amplifica a vigilância em massa com tecnologias de reconhecimento facial e coleta de dados, revela outra aposta perigosa na estatal dos Emirados — que, sem nenhuma transparência, é chamada por Derrite de “coordenadora” do projeto.
Desde a posse de Tarcísio, a letalidade policial tem aumentado. A Rota, em particular, atingiu um pico de letalidade alarmante nos primeiros meses de 2024. O aumento rompe com a tendência de redução da violência policial observada até 2022, sinalizando um retrocesso significativo.
O vínculo entre o governo paulista e a Edge, empresa que também é associada a sistemas de espionagem como BeamTrail, Digital14 e DarkMatter, pode levar a um cenário ainda mais dramático.
São sistemas usados por ditaduras para monitorar opositores, e a transição dessas tecnologias para a segurança pública paulista pode ter consequências nefastas. Especialmente em uma polícia cujo comando, fruto do bolsonarismo, parece não ver problemas em contar mortos.