Por Paulo Motoryn (foto ao lado), editor de Brasília do site The Intercept, na newsletter Cartas Marcadas:
O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, do Republicanos, pode parecer, hoje, um candidato cada vez menos promissor e incapaz de derrotar o presidente Lula numa disputa nacional. Ainda assim, segue sendo o nome mais competitivo da extrema direita brasileira.
Mesmo fustigado pela ala mais radical do bolsonarismo, inclusive pelos filhos do ex-presidente Jair Bolsonaro, ele permanece fiel ao mesmo repertório ideológico, apenas dito em outro tom.
No seu governo, a agenda ultraliberal que se apresenta como modernização convive não apenas com a brutal violência policial, mas também com pautas que flertam com o negacionismo bolsonarista.
É nesse ambiente que nasceu o acordo do governo Tarcísio com o grupo ligado à farsa do ET Bilu. O tema foi abordado pela imprensa nas últimas semanas. Mas, por trás do caso, há uma realidade perigosa.
Eu sei que não parece, mas o assunto é sério. Eu juro. Vamos aos fatos.
Muito além do ET Bilu
É bem possível que você tenha lido que, em 2024, a Secretaria de Turismo do governo de Tarcísio de Freitas assinou um protocolo de intenções com a Dakila Pesquisas, organização liderada pelo empresário Urandir Fernandes de Oliveira – o criador do inesquecível ET Bilu.
O acordo, revelado pela Folha de S.Paulo no início do mês, previa cooperação para supostos estudos sobre o Caminho de Peabiru, uma antiga rota indígena que ligava o Oceano Atlântico ao Pacífico.
A articulação para assinatura foi conduzida pelo secretário estadual de Turismo de São Paulo, Roberto de Lucena, pastor evangélico filiado ao Republicanos, o mesmo partido do governador, e amigo de longa data do ex-presidente Jair Bolsonaro, do PL.
Meses depois, o convênio entre a Dakila e o governo estadual foi encerrado em função da falta de entrega de resultados técnicos, mas produziu o efeito central buscado pela organização: legitimidade estatal.
Ter sido oficialmente reconhecida como parceira de um governo estadual, afinal, é credencial para sustentar a imagem de instituto científico, usada em outras frentes de atuação.
Justiça seja feita: não é só o governo Tarcísio que abriu portas para a Dakila. Em maio e setembro deste ano, a organização realizou eventos no mais prestigiado auditório do Congresso Nacional, o Nereu Ramos. Procurei a Câmara para entender quem autorizou a realização dos eventos, mas não houve resposta até a publicação da reportagem.
Segundo historiadores ouvidos pelo Intercept, essa relação com governos, feita por meio de parcerias, convênios e eventos com a presença de representantes do estado, é utilizada pela Dakila para expandir atividades supostamente científicas e empresariais.
A verdade é que a Dakila é tratada como mera curiosidade folclórica, uma seita excêntrica que viralizou com o ET Bilu. Mas esse enquadramento esconde o que o grupo efetivamente se tornou.
Ao longo de mais de duas décadas, a organização desenvolveu também uma frente empresarial formal, composta por companhias registradas em setores diversos, associadas a integrantes próximos e até familiares de Urandir Fernandes de Oliveira.
Entre elas, estão a AgroDakila, na área do agronegócio; a 067 Vinhos, que atua no comércio de bebidas; e a Brazilian Kimberlite Clay, que trabalha com extração e comercialização de argila. Em paralelo, a Kion Cosmetics utiliza o mesmo insumo na linha de cosméticos que produz.
Todas essas empresas têm constituição regular e operam no mercado, compondo o que o próprio grupo descreve como um “ecossistema” voltado à auto sustentação de suas atividades.
Também faz parte dessa estrutura a BDM Dourado Digital Gestão de Ativos Ltda, uma espécie de banco digital apresentado como ferramenta de “educação econômica” e integração financeira interna do grupo.
Segundo um documento obtido pelo Intercept Brasil, a tecnologia base utilizada pela BDM foi alvo de disputa judicial e seria derivada de um sistema já existente no mercado internacional de blockchain, e não de desenvolvimento próprio, como alegado pela Dakila.
Pesquisadores que acompanham a organização entendem essa diversificação empresarial como uma segunda camada do projeto: a crença e o conteúdo místico no topo, e uma operação comercial organizada na base.
Em busca de Ratanabá
Desde 2020, a Dakila vem tentando obter licenças arqueológicas junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, para atuar em áreas de interesse ambiental e cultural na Amazônia.
O grupo apresentou, em 2021, pedidos baseados diretamente na narrativa de “Ratanabá” e da suposta civilização “Muril”, solicitando autorização para iniciar pesquisas no Forte Príncipe da Beira, em Rondônia, e depois expandir para outras regiões. A narrativa se trata de uma teoria da conspiração sobre uma suposta cidade perdida na Amazônia, sem o apoio da comunidade científica ou instituições de pesquisa.
Em resposta, o Iphan solicitou documentos básicos (coordenadas, metodologia, qualificação técnica e comprovação da hipótese) e não concedeu a licença.
Em 2023, já sob nova gestão federal, a Dakila reformulou o pedido: desta vez, com o título “Arqueologia da paisagem como ferramenta para conservação”, localizado na Aldeia Mayrowi, em Apiacás, no Mato Grosso, em território associado à Terra Indígena Kayabi.
O parecer técnico do Iphan apontou carência de arqueólogo com a titulação exigida, ausência de vínculo acadêmico reconhecido e falta de comprovação de consentimento livre, prévio e informado das comunidades locais. O pedido foi novamente negado e arquivado.
Mesmo sem sucesso, houve apoio político à iniciativa.
Enquanto a mídia comercial trata a entrada de teorias da conspiração no governo como piada e vende Tarcísio de Freitas como um candidato técnico, me esforço para te revelar o real perigo!
Um grupo está usando o selo do governador de São Paulo para se aproximar de terras indígenas e transformar áreas públicas em negócio privado.
Um dos ofícios anexados ao processo administrativo, em março de 2024, partiu do deputado federal Ricardo Barros, do PP do Paraná, pedindo “atenção” especial do Iphan ao pleito.
Curiosidade: já neste ano, em maio, Barros foi eleito presidente da Comissão de Ciência (sim, de ciência), Tecnologia e Inovação da Câmara dos Deputados. Questionei o gabinete do deputado sobre o apoio à Dakila, mas não houve retorno.
No ano passado, a Sociedade de Arqueologia Brasileira aprovou uma Moção de Repúdio às iniciativas da Dakila, registrando o uso recorrente de eventos científicos como estratégia de busca indireta por legitimidade.
Procurei a Dakila fazendo questionamentos sobre cada uma das informações apresentadas na reportagem. Não houve resposta. Caso haja retorno, será adicionado à versão deste texto que será publicada no site do Intercept Brasil.
Por que isso importa para você
Enquanto você lê isso, grupos como a Dakila seguem usando a máquina pública para ganhar credibilidade. Primeiro foi o governo de São Paulo. Depois, o Congresso Nacional. Amanhã, pode ser a Amazônia.
Nenhum grande veículo vai investigar isso a fundo. Sabe por quê? Porque é mais fácil publicar essas histórias como algo engraçadinho do que o perigo real que a entrada do negacionismo científico nas nossas instituições representa.
Mas aqui no Intercept, a gente sabe: pseudociência com chancela do estado não é piada — é porta de entrada para negócios escusos, invasão de terras indígenas e erosão da confiança nas instituições.


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