
Querida tia Dolores:
Todo dia, lembro de nossas discussões. Perdi as contas de quantas vezes saímos (para não brigar mais) e voltamos (para continuar brigando) ao grupo de zap da família. Mas lembrar de ti ontem foi de partir o coração! Doeu ouvir aquilo, tia. Não por mim (bem sabes que abomino aquele cara), mas por ti. Porque sei o quanto é sincero teu engano e o quanto acreditavas naquele jeitão grosso dele de falar e sua ilusória aparência de autenticidade.
“Conhece a verdade e ela vos libertará”, ele costumava repetir. Mas quem te libertará do cumprimento dos doze anos de sentença que o Xandão carimbou no teu prontuário? Tu perdeste noites de sono replicando fakenews no twitter. Perdeste mais. Perdeste amigos. Arriscaste a própria vida se entupindo de remédio para verme enquanto a humanidade vivia o pesadelo de uma pandemia. Vestida de camisa verde e amarela, foste para a rua segurar cartazes que imploravam aos quartéis por apoio a um golpe de Estado que perpetuasse o mandato de teu “mito”. Fizeste rodas de orações em volta de pneus numa estrada erma. Em desespero, ligaste a lanterna do celular na direção do céu noturno em busca do socorro estrelar. E como tu poderias agora esquecer aquele incômodo cheiro de urina que o vento soprava para dentro da barraca em que acampavas na praça defronte ao quartel? Ao fim, lá estavas tu, com uma bíblia na mão e um porrete na outra a despedaçar as vidraças que encapsulam os panteões da República.
E agora, tia? Estais presa como “terrorista”. Condenada por defender a quem agora te chamou de “maluca” diante daquele ministro careca do odiento STF que foste convencida, arriscando tudo, a acusar das piores deformações. Imagino, então, que estais no refeitório do presídio a sorver um caldo insosso a título de terceira refeição e vês num televisor teu mito, meigo como um cãozinho bem domesticado, convidando o terrível Xandão para ser seu companheiro de chapa e a te chamar de “maluca” com um desprezo que de cristão não tem nada.
Se maluca és pelos atos cometidos em favor dele – deves estar se perguntando agora – por que ele, como líder que era, não te alertou a tempo para a impropriedade daqueles atos intempestivos? Por que te viu cometê-los sem que fizesse à tua iniciativa qualquer ressalva, enquanto os familiares dele te rendiam honras de heroína nas redes socias quando, entre os talheres lustrosos de boa mesa, compravam mansões no metro quadrado mais caro do país?
Enfim, tia Dolores, doeu em mim te ver descrita como uma desarrazoada inconsequente por aquele que, por todos os meios, te levou a agir daquele modo e ver-te agora a amargar as consequências que este teu sobrinho tanto te advertiu – em vão, infelizmente. Domingo estarei novamente contigo e conversaremos mais. Levarei a torta de maçã que tanto gostas e um baralho novo para quebrar a monotonia dos prolongados dias de prisão.
Beijos do sobrinho que te ama.