
O professor Darcy Ribeiro dizia que, apesar das muitas derrotas que alegava ter acumulado ao lutar por um Brasil mais justo, não gostaria de estar, dada a tragédia dos resultados, no lugar daqueles que o venceram.
A confissão sugere que ele não perseguia uma vitória pessoal, mas a prevalência de valores que não aceitaria renegar para garantir privilégios ou obter vantagens.
Claro, o objetivo da ação política é a conquista do poder – oportunidade de realizar o necessário – e o autor de “O Povo Brasileiro” não se esquivou de lutar por isso, sendo perseguido pela ditadura militar (1964-1985), mas tendo demarcado que o poder pelo poder não era sua ambição.
A lembrança do escritor e militante do Partido Democrático Trabalhista, que ajudou Leonel Brizola a fundar, se deu quando li nos jornais – sem surpresa, porém ainda assim decepcionado – uma notícia que veio reforçar a indesejada certeza de que nada nesse mundo é tão ruim que não possa piorar quando a decadência adquire prestígio ou sequestra a razão de um coração encharcado de ressentimentos.
A notícia repercutia o fato de ter o mais recente ex-candidato a presidente do partido fundado pelo Doutor Darcy, Ciro Gomes, procurado o deputado Alcides Fernandes, pastor evangélico filiado ao partido de Jair Bolsonaro (e por ele indicado como candidato a senador pelo PL nas próximas eleições, em 2026) para declarar apoio, público e pessoal, à sua pretensão de chegar à câmara alta levando a mensagem obscura que sua legenda prega.
A matéria trazia uma fotografia – já histórica desde a impressão do primeiro exemplar do jornal – em que Ciro se deixa adornar pela companhia risonha de personagens declaradamente comprometidos com as manobras golpistas do conluio bolsonarista para impor pela força a recondução de um ex-presidente derrotado nas urnas.
Era gente para quem ele vinha há anos reservando os piores termos. Estava lá, numa versão selfie divulgada, o Sargento Reginauro, tido pelo “trabalhista” até poucos dias como braço direito do “chefe de milícia” Capitão Wagner, além de outra deputada, pastora Silvana, que apoiou a cruzada medieval de Bolsonaro para restringir o impacto da campanha vacinatória que, por força disso, não conseguiu evitar que a Covid ceifasse a vida de 700 mil brasileiros.
Ciro Gomes ainda tentou ressalvar que mantinha com o pastor candidato “diferenças inconciliáveis”, mas a atmosfera calorosa do inusitado encontro sugeria o uso de um termo menos irredutível, até porque Ciro já se declarara anteriormente “inconciliável” com outros personagens que mais tarde abraçou na sua peleja para continuar em evidência no tablado da política.
Embora traçando tais diferenças, Ciro justificou a aliança com um adorno retórico de pendor épico: a urgente necessidade de “salvar o Ceará” – estado cujos indicadores socioeconômicos não se encontram abaixo da linha média de desempenho apresentado durante os governos que ele apoiou, nem porta, em qualquer dimensão da gestão pública, uma crise de proporções díspares com, pelo menos, a média nacional de suas agruras crônicas.
Vale tudo pelo poder ou, como diria Darcy Ribeiro, melhor preservar a biografia coerente com as causas que lhe custaram a dignidade das derrotas? Bem… Cada cabeça, uma sentença.