Do site The Intercept, com texto de Radley Balko:
O Departamento de Justiça dos EUA anunciou em janeiro que a criminalidade na capital, Washington, havia chegado em 2024 ao menor índice em 30 anos. Este ano, até agora, ela já caiu mais 26% em relação a ele. Em outras palavras, é um momento curioso para o presidente declarar que a capital do país é um pântano de violência, que exige a experiência no combate ao crime que só um homem de 79 anos que fetichiza ditadores e cuja visão de mundo está permanente presa na década de 1980 pode oferecer.
A motivação para o plano de Donald Trump de “federalizar” Washington é a mesma que está por trás do envio de tropas para Los Angeles; da deportação de pessoas para o CECOT, a prisão em El Salvador; da politização do Departamento de Justiça; e de quase todos os seus excessos autoritários dos últimos seis meses. Ele está testando os limites de seu poder –– e, por extensão, da democracia dos EUA. Ele está tentando sentir até onde a Suprema Corte, o Congresso e a população o deixarão chegar. E até agora, conseguiu fazer tudo o que quis.
O incidente que aparentemente precipitou a operação de Trump em Washington foi apenas um pretexto. A questão não foi a quantidade de crimes violentos, foi o crime atingir a vítima errada. Trump e Elon Musk declararam que Washington era uma terra de ninguém infestada pelo crime, depois que surgiram fotos de Edward ‘Big Balls’ Coristine, que integrava o chamado Departamento de Eficiência do Governo, o DOGE, espancado e ensanguentado em um suposto roubo de carro. Os agressores fugiram quando um agente da polícia metropolitana chegou ao local –– bem mais proteção do que as vítimas de crimes costumam receber das forças de segurança.
Em resposta a isso, Trump vociferou nas redes sociais durante o fim de semana. Ele imediatamente enviou para a cidade centenas de agentes do FBI, do Departamento de Investigações de Segurança Nacional, e do Serviço de Imigração e Controle Aduaneiro, ou ICE (que então responderam a uma colisão de trânsito como se fosse uma ameaça de bomba).
Em seguida, Trump enviou também centenas de soldados da Guarda Nacional. Embora as Guardas Nacionais dos estados respondam aos governadores, Washington é um distrito federal, não um estado, e a Guarda Nacional de lá se reporta ao presidente. O governo federal também tem jurisdição sobre Washington. O poder de fiscalização deveria ser do Congresso, não do presidente. Mas esse Congresso essencialmente se incorporou às pautas de Trump.
Essas distinções jurídicas significam que a “federalização” em Washington não é um abuso de poder tão extraordinário quanto o destacamento de fuzileiros navais e soldados da Guarda Nacional para Los Angeles, em junho. Mas como Trump deixou claro em uma tresloucada coletiva de imprensa na semana passada, ele mesmo desconhece ou desconsidera essa diferença. Ele prometeu enviar tropas para Oakland, Baltimore e Nova York, também.
Mas como em Washington e Los Angeles, a criminalidade violenta em Oakland e Baltimore caiu drasticamente este ano. Nova York, por sua vez, continua sendo uma das mais seguras cidades grandes no país, a despeito do que a Fox News possa dizer.
Também não havia emergência em Los Angeles. Com ajuda da bolha de mídia da extrema direita, o governo explorou alguns poucos incidentes de destruição de propriedade, com um aumento de protestos pacíficos contra as operações anti-imigração, para retratar a cidade como um inferno distópico.
Uma coisa importante que Trump aprender em Los Angeles é que a justiça federal não interferiu. Embora o Tribunal Recursal do 9º Circuito dos EUA tenha decidido que a decisão de um presidente de federalizar a Guarda Nacional contra as objeções de um governador de estado deve ser avaliada pela justiça federal, o tribunal também aceitou sem questionar a alegação de Trump de que os protestos representavam uma ameaça ao controle de imigração.
Mas não há muitos indícios de que isso seja verdade. E mais importante, esse nunca foi o verdadeiro motivo para Trump ocupar a cidade. Como a secretária de Segurança Nacional, Kristi Noem, o próprio Trump, e vários documentos internos já deixaram claro, o verdadeiro motivo era intimidar os manifestantes, aterrorizar as comunidades de imigrantes e seus defensores, e “libertar” cidades e estados de maioria democrata dos “socialistas” eleitos. Era uma forma de projetar poder.
Nova York, Washington, Baltimore, Oakland e Los Angeles são todas cidades com grande população negra, governadas por democratas negros.
Há muito tempo Trump menospreza cidades com grande percentual de população negra e governantes negros. Nova York, Washington, Baltimore, Oakland e Los Angeles são todas cidades com grande população negra, governadas por democratas negros. O candidato mais bem posicionado para ser o novo prefeito de Nova York é um socialista democrático muçulmano. Trump não pretende “proteger” os habitantes dessas cidades do crime. Ele planeja impor sua vontade sobre eles.
A intervenção em Washington acontece 10 dias depois que uma matéria na revista New Republic divulgou um memorando do Pentágono, de autoria de Phil Hegseth, irmão do secretário de Defesa, que descrevia os planos do governo para enviar tropas para todo o país, para ajudar no controle de imigração “pelos próximos anos”.
O memorando divulgado pela New Republic pretende reproduzir em outras cidades o que Trump fez em Los Angeles. Ele equipara protestos pacíficos e constitucionalmente protegidos com organizações criminosas internacionais como Al Qaeda e ISIS. E coloca forte pressão sobre o Pentágono para deixar de lado os princípios fundadores dos EUA em relação ao papel de um exército permanente, em prol de forças militares cada vez mais voltadas para dentro, contra os próprios residentes e cidadãos do país, para cumprir os desmandos do presidente.
É isso que Trump sempre quis. Ele sempre manifestou sua inveja e seu respeito por líderes autoritários que poderiam atiçar os militares contra manifestantes e críticos.
Uma das demonstrações mais saudáveis da democracia dos EUA é que, nas ocasiões em que os políticos defenderam uma postura mais ativa do Pentágono no policiamento interno, a maior resistência costumava vir de dentro do próprio Pentágono. Há muito tempo existe um princípio fundamental na cultura militar do país, de que os soldados não devem ser mobilizados contra seus concidadãos. É um limite absoluto muito bem definido.
Esse limite resistiu em 2020, quando Trump queria mandar os militares para atirarem nos manifestantes dos protestos por George Floyd em Washington. Tanto seu secretário de Defesa, quanto o chefe do Estado-Maior Conjunto se recusaram a atravessá-lo, e ameaçaram renunciar.
Mas Trump aprendeu a lição. Desta vez, ele rapidamente expurgou as principais lideranças do Departamento de Defesa e os oficiais do Estado-Maior Conjunto, e os substituiu por bajuladores devotados ao trumpismo. Pete Hegseth escreveu em seu livro que quer convocar os militares a uma guerra santa, e Trump conta com orgulho que seu atual chefe de Estado-Maior Conjunto, general Dan Caine, já teria dito uma vez que seria capaz de matar por Trump. Assim, entre os escalões superiores do Pentágono, o limite absoluto parece ter desaparecido.
‘Nada deixa a população tão condicionada a aceitar restrições às liberdades civis e grandes ampliações do poder do governo quanto o medo.’
Isso significa que a decisão de executar ordens ilegais, inconstitucionais, de prender, agredir, ou até matar imigrantes, manifestantes, ou os supostos inimigos do presidente será tomada em um ponto muito mais baixo da cadeia de comando, em níveis nos quais desobedecer ordens não implica dispensa de uma função política, mas possível julgamento em tribunal militar ou prisão.
Também precisamos pensar como isso pode facilitar a escalada do autoritarismo, caso os EUA enfrentem uma crise real. Especialistas em segurança nacional temem que o desmonte da CIA e do FBI e a policitação da NSA possam deixar o país mais vulnerável a ataques como o 11 de setembro. Independentemente das opiniões sobre esse receio, um ataque desse tipo não seria visto como vulnerabilidade para esse governo, mas como oportunidade. Nada deixa a população tão condicionada a aceitar restrições às liberdades civis e grandes ampliações do poder do governo quanto o medo. É seguro dizer que esse governo vai explorar qualquer crise legítima de forma tão descarada quando explorou as crises que ele mesmo produziu.
Há 15 anos, faço um discurso sobre a militarização policial, baseado no meu primeiro livro. Sempre terminei o discurso com um choque de realidade em relação ao termo “estado policial”. Tento enfatizar que, apesar das tendências incômodas que acabei de descrever, nos EUA não vivemos em um estado policial. Na verdade, é importante falar sobre esses problemas enquanto ele estão acontecendo, porque no momento em que você estiver em um estado policial, falar deixa de ser uma opção.
Agora já ultrapassamos o ponto de crise. Trump sonha há muito tempo em presidir um estado policial. Ele já elogiou abertamente os líderes estrangeiros que estão no comando de um desses, e relutou em criticá-los. Ele agora indicou pessoas que já manifestaram sua disposição para ajudá-lo a atingir esse objetivo para cargos com poder para fazer isso acontecer. E tanto ele, quanto seus assessores de mais alto escalão já se manifestaram abertamente, e até colocaram por escrito seus planos para implementar um estado policial.
É hora de acreditar neles.