Valdélio Muniz: “Controles de jornada: novo mundo sob velhas lentes do velho ‘ponto'”

Artigo do jornalista Valdélio Muniz (foto ao lado), analista judiciário (TRT-7ª Região), mestre em Direito Privado, professor de Direito e Processo do Trabalho (Fadat), membro do Grupo de Estudos em Direito do Trabalho (Grupe-UFC). E-mail: valdsm@uol.com.br. Valdélio  também é autor do livro “Tecnovigilância e hiperconexão laboral: múltiplas facetas do teletrabalho e impactos na saúde do teletrabalhador” (Editora Venturoli, 2024):

No mundo do teletrabalho atual, um fato chama atenção: a dessintonia entre as práticas gerenciais ainda adotadas por muitas empresas quanto às formas de controles de jornada e as expectativas e necessidades dos trabalhadores. De um lado, um grupo cada vez mais considerável de empregados de empresas privadas e servidores públicos que adere à opção (por vezes, sim, não tão fácil) de misturar, num só lugar, vida privada e trabalho. De outro, um exército de gestores que ainda parece não compreender suficientemente que o tempo do controle de ponto das fábricas passou e já faz um bom tempo.

Primeiramente, é preciso ter clareza de que controle de ponto nunca foi pensado para servir de cabresto, para amarrar o trabalhador a um tronco denominado trabalho. Prova disso é que há muitos, ainda hoje, que cumprem religiosamente uma jornada sem que isso, no entanto, implique necessariamente o alcance de uma produtividade minimamente satisfatória e adequada, enquanto outros, na metade da mesma jornada, conseguem dar respostas extraordinárias. Em verdade, as exigências de controle de jornada decorreram da necessidade de impor limites à superexploração que se verificava nas fábricas a partir da 1ª Revolução Industrial (segunda metade do século XVIII), quando homens, mulheres, idosos e crianças tinham sua força de trabalho sugada por até 16 horas diárias, como se a vida humana se resumisse apenas à produção em favor de terceiros. “Não sois máquina. Homem é o que sois”, alertou Charles Chaplin, em seu Último Discurso, na obra O Grande Ditador (1940).

Pois bem. Falta a muitos, por incrível que pareça, o entendimento de que todas as regras estabelecidas para controle de jornada (desde a 1ª Convenção da Organização Internacional do Trabalho-OIT, criada em 1919, que tratou de limitar as jornadas, à época, a 8 horas diárias e 48 horas semanais, hoje reduzidas no Brasil a 44 horas semanais) constituem, a rigor, norma de saúde e segurança no trabalho. Estudos comprovam, por exemplo, que muitos dos acidentes de trabalho ocorrem nas sobrejornadas (horas extraordinárias), quando a fadiga compromete, naturalmente, os reflexos dos trabalhadores. A síndrome de Burnout, como todos sabem, corresponde, quase sempre, a um estado de exaustão (física e mental) decorrente do excesso de trabalho.

Exatamente por não sermos máquinas, foi preciso (e continua sendo cada vez mais) estabelecer direitos como descanso semanal remunerado (DSR), férias anuais remuneradas,
intervalos intrajornada (dentro da mesma jornada) e interjornada (entre uma jornada e outra), encarecimento do valor da hora extra (não para encher os bolsos do trabalhador e esvaziar os do seu empregador, mas para permitir que só se exija esse esforço adicional do ser humano quando, de fato, seja extremamente necessário, em vez de se fazer disso rotina que substitua a necessária contratação de mais trabalhadores).

Não é à toa que pesquisas recentes, realizadas por diversos institutos em inúmeros países de diferentes continentes, demonstram que as novas gerações de trabalhadores não
anseiam nem se identificam com trabalhos que não lhes ofereçam jornadas flexíveis. Eles têm plena consciência de que viver é muito mais do que apenas trabalhar. Pode parecer clichê, mas o certo é trabalhar para bem viver e não apenas viver para bem trabalhar. Quem apenas trabalha, certamente, uma hora há de se dar conta do quão vazia de sentido é sua vida. As consequências são terríveis.

Inúmeros estudos também têm demonstrado que cada pessoa tem seu “horário pico” de produtividade, algumas cedo da manhã, outras pela tarde, à noite ou mesmo na madrugada. Identificar e permitir que se explore, no bom sentido, essa condição é prova de inteligência. Desconhecê-la e desrespeitá-la, forçando a própria natureza de cada um, é, por vezes, desperdício e ignorância. Exigir cumprimentos de horários (jornadas) fechados e generalizados (padronizados) quando se trata, sobretudo, de quem exerce atividade teletrabalhável pode ser contraproducente quando há mecanismos muito mais modernos para mensurar produtividade. A menos que o propósito real seja forçar um desligamento ou a aposentadoria antecipada do trabalhador.

 

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