A crônica da Tuty Osório: “O segredo do parafuso”

A crônica da Tuty Osório: “O segredo do parafuso”

Texto da jornalista Tuty Osório:

No supermercado sou lembrada pela moça do caixa que tenho pontos num desses programas de milhagem. Esquecida da senha, ela se oferece para atualizar o cadastro e aceito. Cento e cinquenta de bônus e as compras ficam em menos da metade, somadas as promoções.

A operação demora e a fila cresce. Ao contrário da minha expectativa, não vejo caras zangadas. Sorrisos solidários revelam alegria pela minha conquista inesperada. Como é de meu feitio, desembesto a falar, a contar histórias relativas às minhas dificuldades geracionais com a tecnologia, às minhas distrações com essas vantagens que mexem com pontos acumulados. O seguinte da fila escuta-me com atenção e simpatia. Na verdade, é condescendência e já fico constrangida, pelo encompridar da conversa, pelo exagero de que não sei mexer com aplicativos, pela forçada nota no não ligar para bônus, ilusórios, ou não. No dia seguinte é sete de setembro, procurando distração nas Plataformas encontro por acaso uma mini série do início dos anos 2.000, talvez final dos anos 90. Aquarela do Brasil.

Não assisti na época. Sabia por minha mãe comentar que gostava muito. Bons atores, reconstituição histórica de qualidade, retrato da Era do Rádio, da Segunda Guerra Mundial repercutindo no Brasil, ditadura de Vargas. O clima de repressão, a insegurança, as conspirações atingindo famílias simples, envolvidas nas perseguições por causa das obsessões dos representantes da polícia política. Seja qual for, em que era for, opressão, tortura, é sempre uma chaga, obviamente ruim.

Fico triste quando vejo pessoas com nostalgia de ditadura. Acreditando que eram tempos mais prósperos, mais tranquilos, mais acolhedores, mais respeitosos. Vivemos, hoje, um período difícil, guerras explodindo a todo o momento, a missão das Nações Unidas jamais concretizada. Contudo, nada é pior que ditadura, violência legitimada.

Lembro da caminhada de volta das compras, no dia anterior. O vento de Fortaleza acariciando o meu rosto, na avenida vizinha à beira mar. O mar na linha do olhar, a cada cruzamento. As ruas secundárias têm nomes de notáveis, gente que admiro. Osvaldo Cruz. Joaquim Nabuco.

A transversal do tempo leva-me à nostalgia da verdadeira liberdade. Qual seria essa? As palavras estão sequestradas em seu sentido. Chama-se de isto, aquilo que não o é, de jeito e maneira. Está tudo embaralhado. Até o espelho parece enganador. Devolve uma imagem que muda conforme o material de que é feito, variando de um para outro. O jornal sai que é só dor. A da gente é a que fica de fora, quando é sutil. Está confuso, não está sendo possível forçar a nomeação, a conclusão, o fechamento da Gestalt. Passo pelo rapaz de roupa esportiva impecável, tênis da moda, conduzindo o cão labrador em elegante caminhada. Continua o vento no meu rosto, o céu azul escuro no encerramento da tarde. Que benção essa visão do mundo, essa perspectiva de indubitável beleza. Não há dúvida nem equívoco. São meus olhos, minha pele, a minha respiração em aventura. O pensamento circula e dá cambalhotas. A cabeça está bem aqui. É a minha, mesmo.

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Tuty Osório é jornalista, especialista em pesquisa qualitativa e escritora.

São de sua lavra QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos de 2022); SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho de 2023) e MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA, dez crônicas, um conto e um ponto (crônicas e contos, também de 2023).

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