A crônica da Tuty: “Não rima com mãe gentil”

Por Tuty Osório:

No Café do Shopping a moça que atende às mesas desequilibra a bandeja e quebra copos e xícaras, não sei se poucos ou mais. Paro de escrever atraída pelo barulho, percebo o que se passa, fico com pena da moça, preocupada se está machucada, se vão descontar do seu pagamento o prejuízo que resultou de um acidente.

Questiono-a se está tudo bem. Afirma que sim. A colega que a ajuda a recolher os cacos pergunta-me se estou bem, também. Não, não me machuquei, nem me assustei, na verdade são coisas que acontecem. Estou apreensiva se vão descontar, ofereço-me para ajudar no que puder. Não posso, elas esclarecem. Não será descontado. Independentemente de se quebrar alguma coisa, é feito um desconto preventivo no pagamento dos funcionários.

Contam o absurdo calmamente, sem revolta, considerando, aparentemente, justo e normal. Fico chocada, meio paralisada, logo na sequência, revoltada. São pessoas, passíveis de acidentes, erros, até. O empresário não arrisca nada. Normalmente ergue os negócios com financiamentos a juros baixos, incentivos fiscais, parcerias com os Bancos Públicos. Em lugar de investir num ambiente de motivação, aplica uma punição antecipada. Sei que não são todos assim. De toda a forma, o desequilíbrio é conhecido e pouco se faz para equalizar a situação. Há os que têm acesso ao capital com a justificativa de que geram empregos. E
os que estão condenados à sujeição de um trabalho mal remunerado, precarizado, sem direitos, com deveres ilimitados. 

Não é só nas fábricas, na construção civil, no agronegócio, no telemarketing. Ali, naquele lugar bonito, cheiroso, confortável, satisfação garantida amplamente anunciada, também há exploração e desacato – ao que se compreende como respeito, dignidade. Está difícil salvar a pátria se não formos irmãos, continuando a haver uns mais contemplados do que outros.

Ressalto as devidas ressalvas às exceções que conheço, enalteço, aplaudo. Sem medo de admitir que estamos moldados pela pedagogia da indiferença. Passamos por esse cotidiano com sofrimento, sim, porém esquecendo a opressão ao dobrar a esquina. São jovens as moças que atendem às mesas do Café do Shopping. Certamente sentem-se com sorte porque conseguiram uma oportunidade, até não tão insalubre, de sobrevivência.

São empregos. São vagas. São estatísticas e cifras e balanços que estamparão os infográficos das notícias. A expressão contraída da menina que balançou a louça, veloz e implacável a espatifar-se no chão, ficará quantos dias na lembrança de meu romantismo patético? E a dor, a dor dela que persiste, sairá no jornal?

*** ***

Tuty Osório é jornalista, especialista em pesquisa qualitativa e escritora.

São de sua lavra QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos de 2022); SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho de 2023) e MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA, dez crônicas, um conto e um ponto (crônicas e contos, também de 2023).

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SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA
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