Texto da jornalista e escritora Tuty Osório:
A mesa reúne amizades que não se veem há tempos. É hora do almoço e a primeira etapa dá conta de atualizar a respeito da filharada, dos netos para quem já tem, as viagens mais recentes, as manias novas e as doenças do início da velhice. Dói aqui, dói ali, a Glorinha reclama que é melhor mudar de assunto.
Para nosso bem o tema seguinte é política e não temos tantas divergências. Formados em forjas semelhantes, a maioria de nós não mudou tanto assim. Varia a intensidade na percepção de alguns pontos, como a concepção de esquerda e direita, a definição de sistema, o que o compõe e o que não o integra. Desintegrada está a confiança de que seguimos em frente. Mais exatamente a consciência de para onde vamos. O galã Próspero permanece assombrado pelo trôpego Calibã, embora convencido de sua superioridade ilusória. Como na Tempestade de Shakespeare, os personagens misturam as suas identidades, falsamente definidas de início.
Estamos à deriva. Alguém sugere suspender o vinho e a maioria protesta. É sexta feira de chuva e não temos mais compromissos de trabalho. Afinal não é todos os dias que conseguimos juntar a turma. Faz anos que não rola. Espalhados e dispersos, não temos tido sucesso nas tentativas. Concretizou-se e é mais que especial. O rapaz que atende no restaurante, roupa diferente, elegante, aparece com a nova garrafa que se esvazia em segundos num tour pelas taças.
Artur lança a ideia mais debatida nas últimas semanas. O problema é a despolitização, a ausência de politização paralela aos avanços sociais. Não se explica, não se dá sentido político ao aumento real do salário mínimo, da expansão da moradia, da garantia da saúde e da educação pública.
– Não entendi! Você acha errado não haver exploração política? – protesta Natália.
– Estou falando de leitura política, diferente de oportunismo politiqueiro, fisiologista, populista, – esclarece Artur.
Uns concordam com o amigo, afirmando compreender com clareza o que ele defende. Que, aliás, ressaltam, não é novidade, embora seja sempre bom lembrar. Outros protestam que isso é conversa de intelectual, o povo quer é o prato cheio e poder dormir sabendo que vai acordar com emprego digno e perspectivas de futuro.
Elevo a voz chamando a atenção que estão falando da mesma coisa, só que de modos diferentes. A intimidade leva-os a taxar-me de formalista, simplista, e sei lá mais o quê que cabe ali. A delícia é o debate entre criaturas que se querem bem. A sorte de nos termos uns aos outros, aconteça o que acontecer.
A água lá fora faz um barulho ensurdecedor e parece não ter fim. Saímos aglomerados, compartilhando as poucas sombrinhas, em busca dos UBERS que conseguimos catar depois de longa espera no aplicativo.
Se somos capazes de divergir com bases consistentes, minimamente, é porque tivemos as portas abertas para o conhecimento. Queremos essa chance ampliada, completa, sem
deixar ninguém fora da grande roda em volta do sol.
* A Paidéia era o sistema de educação e formação ética da Grécia Antiga, que visava a formar um cidadão completo e perfeito. O termo Paideia (παιδεία) surgiu no século IV a.C. e significa mais do que educação, pois também se refere a cultura e formação do homem grego.
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Tuty Osório é jornalista, especialista em pesquisa qualitativa e escritora. São de sua lavra QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos de 2022); SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho de 2023) e MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA, dez crônicas, um conto e um ponto (crônicas e contos, também de
2023).
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SÕNIA VALÉRIA, A CABULOSA
QUANDO FEVEREIRO CHEGOU
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