Crônica de Tuty Osório: “O recado das chuvas”

Crônica da jornalista Tuty Osório:

Só, o nome do poema. Antônio Nobre, português do século XIX. Cresci ouvindo na vitrola da sala, na voz de João Vilareth. Ator e intérprete de poesia, dos maiores. O maior, na verdade. Para mim, para meu pai, para minha mãe, meus irmãos, para muita gente que viveu parte de seu tempo de glória.

 Era lindo e triste. O poema enaltece os olhos da amada do poeta, e termina: “Ó dona de olhos tais, foi para ver tanta desgraça que Deus te deu tão lindos olhos?”

 Século XIX. Não havia televisão, internet. E o horror chegava. E agora? Que chega a verdade e a mentira, 24 horas, Não, não tem como ter trégua se a gente tiver um pingo de sensibilidade, indignação, consciência. Você se mobiliza para ajudar e na paralela vem mais horror. 

Na frontal vem mais horror. O horror vem pelo celular. O celular que era para ser somente um telefone e virou a pulsação dos dias, literalmente. E os que sofrem o horror diretamente. Perderam casa, família, passado, futuro.  

“Jesus! Jesus!”, está escrito no poema. Ouvi no poema. E repito eu no século XXI. E digo. Muito convicta. Tem muitas coisas lindas para a dona de olhos tais ver. Para vossos olhos e os meus olhos verem. 

Vejo os filhos da Gardênia, moradora de rua que não me pede nada. Deseja-me sempre sorte, abençoa-me sempre. A mim e a minhas filhas saindo do supermercado onde espera comida. Que eu ofereço, junto com um abraço apertado e o conselho que se cuide. Que cuide sempre daquelas crianças, tão lindas, que a rodeiam e recebem as frutas com alegria. 

Vejo o Samuel e a Maya, meus sobrinhos netos que acabaram de vir. E já enfrentam as dificuldades inerentes a estar vivos, simplesmente. Meus pequeninos heróis, que sem saberem me inspiram. E desejo, quero ver, com estes olhos, mais e mais crianças a povoar este mundo que será salvo dos horrores se mais e mais nos dedicarmos a salvá-lo.

 Peço que a bondade e o riso me salvem. Nos salvem a todos. A água que vinha para fazer florir e também mata, em rebeldia pela insensatez dos humanos de má vontade, não ficará como o símbolo da devastação. Teremos que exigir a retratação dos poderes, a ressignificar a água que sempre foi vida. 

Vamos rir. Buscar o riso em glória, buscar os motivos para rir de nós, de nossa incoerência e vulnerabilidade. O riso por nossos amores, conquistas, confortos. Por nossas bizarrices, nossos filhos, nossas plantas, animais leais e belos em sua dedicação. A comida que não nos falta, o conforto que nos abraça, a beleza que nos enleva. A fé, o ceticismo, a gentileza, o cinismo, tudo é motivo para nos justificar nesta dimensão.

Oh dona de olhos tais, foi para ver tanta maravilha que Deus te deu tão lindos olhos! Olhemos todos em união, pois!

*** *** ***

Tuty Osório é jornalista, especialista em pesquisa qualitativa e escritora.

São de sua lavra os livros QUANDO FEVEREIRO CHEGOU (contos de 2022); SÔNIA VALÉRIA, A CABULOSA (quadrinhos com desenhos de Manu Coelho de 2023) e MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE MARIA AGUDA, dez crônicas, um conto e um ponto (crônicas e contos, também de 2023).

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